Artigos - Prescrição e Tortura

04/ 09 /2013

Prescrição e Tortura

Vallisney de Souza Oliveira*

 

O instituto da prescrição consiste em medida eficaz para proteger as relações jurídicas, porque o Direito não pode pairar no escaninho da incerteza e da insegurança. Numa linguagem metafórica, a prescrição se assemelha a uma espada afiada a cortar de morte a falta de movimento do interessado no exercício de fazer valer o seu pretenso direito perante o Estado. É arma contra a indolência, contra o deixar correr o prazo, contra a acomodação do interessado, pelo seu não-agir e seu não-pedir a proteção estatal, enfim, é expediente implacável contra a não-ação e contra a omissão de se exercer o direito de deduzir pretensão em juízo.

A lei prevê um tempo para a sobrevinda do obstáculo ao uso do direito. Depois de consumado o lapso temporal fica vedado qualquer possibilidade de ação.

As postulações judiciais contra o Estado, de modo geral, seguem a regra do Decreto 20.932/1932, que prevê o prazo de cinco anos para o interessado exercer em juízo seu direito. Esse Diploma legal inclui as ações de reparação de danos materiais ou morais com base na responsabilidade objetiva estatal (art. 37, § 6º, CF/88).

A propósito, assim dispõe o aludido Decreto:

 

Art. 1º. As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou do fato do qual se originarem.

 

Por essa regra, as ações de reparação de dano moral e material das vítimas dos atos de exceção praticados durante a ditadura militar no Brasil estariam prescritas, pois as práticas de tortura são apontadas como ocorrentes até por volta de 1979 e, provavelmente, as pessoas podiam exercer o direito de pedir em juízo indenização pelos males causados pela tortura até, provavelmente, em 1985, quando justamente teve fim o regime militar no Brasil.

Porém, considerando as peculiaridades da situação, sobressai o seguinte questionamento: diante das condições políticas e jurídicas por que passava o país, as pessoas tinham todas as condições, na época daquele regime político nada democrático, de exercer esse direito?

A resposta parece ser negativa, pois além das dificuldades na obtenção da prova para se saber quem estava no país ou no exílio, quem estava morto ou desaparecido, quem foi preso e sofreu torturas, quem foi preso ou morto por outro motivo, quem fugiu para o exterior ou ficou escondido no Brasil, dentre outras situações, o país ainda estava regido pela Emenda Constitucional n. 1/1969 à Constituição Federal de 1967 e continuava sob a égide das leis de Segurança Nacional, que se seguiram, como o Decreto-lei n. 898, de 29 de setembro de 1969, revogado pela Lei n. 6.620, de 17 de dezembro de 1978, por sua vez revogada pela Lei n. 7.170, de 14 de dezembro de 1983. Esse era o quadro legislativo regente da atuação dos juízes e que legitimava os atos do regime militar revolucionário de 1964.

Em geral os juízes reconhecem que qualquer direito de agir contra o Estado deve ser exercido em cinco anos, sob pena de prescrição. Todavia, a ação de reparação de danos materiais ou morais tendo como causa de pedir as consequências deletérias da tortura apresenta novos contornos axiológicos com o advento da Lei n. 9.140/1995, que trata da forma de indenização aos familiares das vítimas, desaparecidas ou mortas, entre 1961 a 1979. Esta Lei criou uma comissão para fazer o reconhecimento das vítimas do regime de exceção e estabeleceu o montante da reparação em três mil reais por ano e o teto de cem mil reais, bem como concedeu cento e vinte dias para o requerimento administrativo de indenização, a contar da publicação da Lei, prazo revigorado pela Lei n. 10.536/2002, que também estendeu o período dos fatos de 1979 para 1988, entre outras previsões.

Diante dessa legislação reconhecedora da tortura no Brasil[1] e do direito à indenização administrativa por esse exclusivo motivo, apresentam-se algumas teses jurídicas visando a sustentar a ausência da prescrição, em confronto com a conhecida tese da ocorrência da prescrição qüinqüenal a contar dos fatos, para a parte postular em juízo a reparação de danos materiais e morais.

Segundo o entendimento corrente e tradicional, o desaparecimento do direito se dá em cinco anos, a partir dos acontecimentos, nos termos do Decreto n. 20.932/1932, modalidade de prescrição normal e aceita para qualquer tipo de pretensão contra a Fazenda Pública.

Esse fundamento foi aplicado inicialmente por alguns juízes de primeiro grau, ao extinguirem diversos processos sem análise de mérito, pela ocorrência da prescrição quinquenal a contar dos atos de tortura. Por essa ótica, cinco anos após os fatos, nenhuma ação de indenização das vítimas teria êxito.

Nas instâncias superiores, porém, a questão tomou outro rumo, vingando a tese da inexistência da prescrição em tais casos, por variados fundamentos.

Arrola-se primeiramente a posição cogitada nos tribunais, segundo a qual o prazo para propor a ação de indenização é de cinco anos após Constituição Federal, porquanto foi a partir daí que o Brasil passou para um estado democrático de direito. Com essa concepção, a vítima ou seus familiares podiam propor ação por atos decorrentes de tortura somente até 05 de outubro de 1993. À evidência, essa posição fica enfraquecida em face da Lei n. 9.140/1995 (alterada pela Lei n. 10.536/2002 e pela Lei n. 10.875/2004), que reconhece oficialmente a existência inegável da tortura por agentes do Estado muito antes da Constituição de 1988.

Outra posição exposta em diversos julgamentos nos Tribunais Regionais Federais e no Superior Tribunal de Justiça é a da elasticidade máxima do lapso temporal de extinção do direito, fixando-o no maior prazo prescricional do Código Civil de 1916, ou seja, em vinte anos, porquanto os atos de tortura ocorreram na vigência do Código Civil anterior[2]. Analisando bem esses inteligentes fundamentos, a tese não parece ser a mais acertada, em face do advento da legislação atual (Lei n. 9.140/1995, com as alterações feitas pela Lei n. 10.536/2002 e pela Lei n. 10.875/2004) reconhecendo os atos de tortura e os meios de reparação administrativa, o que tornou desnecessária e inadequada qualquer aplicação analógica do Código Civil.

Corrente jurídica bastante difundida é a da aceitabilidade da prescrição em cinco anos, a contar da Lei n. 9.140/1995, porque se considera que esta Lei reabriu o prazo prescricional, ao prever a indenização administrativa e a possibilidade de ação de indenização em decorrência daqueles atos de exceção do regime militar brasileiro.

Em julgamento de 10 de abril de 2007, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao referendar algumas posições anteriores daquela Corte no mesmo sentido[3], assentou o seguinte: “a Lei n. 9.140/1995 reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 02 de setembro de 1961 a 05 de outubro de 1988. Assim, houve reabertura dos prazos prescricionais para propositura de ações que visem obter indenizações fundadas em tais fatos” (REsp 651.512/GO, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Turma, julgado em 10.04.2007, DJ 25.04.2007, p. 34).

Conquanto adequados aos fatos e por si só resolverem o problema recursal apresentado, esses fundamentos não solucionam os casos genéricos advindos dos atos de tortura, como, por exemplo, quando a parte não possui condições de ter acesso à justiça e quando não existe lei posterior reconhecendo as práticas de tortura.

Por tais motivos se afigura mais plausível o entendimento de que na hipótese de tortura, este um dos mais hediondos e abomináveis delitos, principalmente quando praticado por agentes governamentais, são imprescritíveis tanto a ação criminal, quanto a ação civil de reparação de danos.

É certo que o afastamento da prescrição deve apoiar-se em previsão legal. Sendo admitida somente em caráter excepcional, como é a hipótese dos fatos relacionados com a tortura ou outros atentados gravíssimos contra a vida e contra a humanidade.

Deve-se ressaltar que a previsão expressa para a imprescritibilidade de ações de reparação civil, segundo a Constituição, ocorre no caso de proteção ao patrimônio público, geralmente violado por práticas de improbidade, de corrupção e de outras condutas ilícitas.

Vale lembrar o disposto na Constituição Federal:

 

Art. 37, § 5º – A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento[4].

 

Conforme esse dispositivo, as ações de indenização por prejuízos ao erário são imprescritíveis. É de se criticar a norma Constitucional, não pela digna escolha do bem jurídico a ser protegido contra a prescrição (a ética, a moral, a honestidade e a probidade na Administração Pública), mas por ter sido omissa em declarar expressamente com o manto da imprescritibilidade outros bens mais valiosos e que demandavam proteção, como é a hipótese do direito à possibilidade de reparação de danos por atos decorrentes de tortura e de acontecimentos que ensejaram maus-tratos, morte ou desaparecimento de pessoas por agentes do próprio Estado[5].

O direito ao pedido de reparação de danos decorrentes da prática de tortura está protegido pelo manto da imprescritibilidade, uma vez que se trata de direito inerente à vida, fundamental e essencial para a afirmação dos povos, independentemente de estar expresso ou não em texto legal.

O próprio STJ – sem contar algumas decisões dos tribunais regionais federais –, mesmo resolvendo a questão da indenização civil à vítima da tortura com base na renovação do prazo prescricional, em face do advento da Lei n. 9.145/1995, admite a tese da imprescritibilidade (REsp. 475.625/PR, Rel. Ministra Eliana Calmon, Rel. p/ acórdão Ministro Franciulli Netto, Segunda Turma, julgado em 18.10.2005, DJ 20.03.2006, p. 333)[6].

Nenhuma vítima ou familiar dos excessos e delitos praticados pelos agentes do Estado no período da ditadura brasileira foi desidioso, deixou de agir voluntariamente ou, desleixadamente, deixou o prazo correr e deixou de promover a respectiva ação de reparação de danos. Na verdade, o interessado não podia ter feito valer seu direito em juízo em face das condições políticas e jurídicas da época, inclusive o sigilo das ações militares e a ausência de lei admitindo os nefastos e lamentáveis acontecimentos, além de outros tantos impedimentos para o devido acesso à justiça.

Dos diversos argumentos utilizados nos tribunais para rechaçar a prescrição quinquenal a contar dos fatos (tais como a prescrição a partir da Constituição, a prescrição máxima prevista no Código Civil à época dos fatos, a contagem da prescrição a partir da Lei n. 9.140/1995 etc.), a tese da imprescritibilidade é a que melhor se aplica ao problema da tortura no Brasil, não apenas durante o período militar, mas a qualquer outra situação do passado, do presente e do futuro.

É até louvável o entendimento de que o prazo prescricional somente deve começar a correr a partir da edição da Lei n. 9.140/1995, porque foi a partir daí que as vítimas ou seus familiares tiveram reconhecimento legal e oportunidade de fazer o requerimento administrativo de indenização, pelo expresso reconhecimento estatal do direito à indenização. Contudo, aqui se indaga: se não tivesse sido editada a Lei n. 9.140/1995 estaria perdido o direito de postular a reparação? Nesse caso, somente a regra da imprescritibilidade resolveria a questão e não deixaria a pessoa desamparada.

É imprescritível a ação de reparação de danos morais e materiais, independentemente da indenização administrativa com base na Lei n. 9.140/1995, embora o montante pago administrativamente possa influenciar na fixação da reparação judicial. Os fatos geradores da ação de indenização atingem caríssimos e irrenunciáveis bens jurídicos como o direito à integridade física e moral e à dignidade humana, que a prática de tortura esquarteja e viola irreversivelmente.

Ao se considerar a ação civil de indenização por atos de tortura como imprescritível, não se pode deixar de defender que, com muito mais razão, a ação penal contra atos de tortura é imprescritível, ou seja, o direito do Estado de punir o agente deve ser assim considerado, por força dos princípios constitucionais de salvaguarda máximas aos Direitos Fundamentais[7] e ainda com base nos fundamentos dos Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil, como a Convenção Americana de Direitos Humanos (Costa Rica – 1969), Convenção Interamericana Contra a Tortura (Cartagena – 1985), Declaração Universal de Direitos Humanos (ONU – 1948) e Convenção Contra a Tortura (ONU – 1984).

Tanto deve ser considerado imprescritível a punição para crimes de tortura, quanto deve ser considerado imprescritível o direito da parte de postular em juízo a reparação de danos, no âmbito civil, pelos efeitos deletérios deixados pelo delito dessa natureza, porque odiosos, desumanos e atentatórios aos basilares direitos das gentes.

Considerando-se imprescritível o direito de ação de responsabilidade objetiva estatal, com base no art. 37, § 6º, da Carta da República, o direito do Estado de promover a ação regressiva contra o agente torturador, como esteio nesse mesmo dispositivo constitucional, também deve ser considerado imprescritível, pelas seguintes razões: ambas as ações possuem a mesma natureza; algumas vezes são formuladas em conexão ou aceitas em denunciação da lide; as demandas formam um elo cuja finalidade comum é a proteção à vida, à dignidade humana e o combate à intolerância dos Estados democráticos contra a tortura e outras formas de crime de verdadeira lesa-humanidade.

Mesmo deixando-se para outra oportunidade a questão da aplicabilidade ou não da Lei da Anistia para os fatos ocorridos no Brasil até 1979, considere-se que as esferas criminal e civil são independentes e a ação de regresso possui natureza civil-constitucional. Portanto, não haveria óbice para o Estado promover a ação regressiva contra o agente, pelo dano a que foi condenado a indenizar na Justiça à vítima (ou familiar) da tortura, independentemente da anistia criminal e administrativa disposta na Lei n. 6.683/1979, não havendo razão para se considerar este Estatuto óbice legal à ação.

Reconhece-se que, ao ser editada a Lei da Anistia e toda a legislação visando à reparação administrativa aos familiares das vítimas da tortura no regime de exceção, incluindo-se aqui o art. 8º do Ato das Disposições Transitórias da Constituição de 1988, não existe intenção ou disposição governamental visando a promover a ação regressiva contra eventual torturador, especialmente em tempos de pacífica convivência democrática e em processo de convalescimento social dos males e da violência do passado, mesmo porque o Estado abriu mão do seu direito de punir.

É inegável a imprescritibilidade para o uso do direito de agir do cidadão, seus familiares e seus herdeiros, para pedir a reparação civil contra o Estado pelos danos causados, tanto aos familiares dos desaparecidos ou dos mortos nos calabouços da ditadura, quanto aos que foram presos e torturados e que tiveram o seu destino modificado, seja porque ficaram com sequelas físicas e psicológicas que os impediram de continuar os estudos ou de exercer uma digna profissão em decorrência da prisão e maus-tratos arbitrariamente ministrados por agentes do regime ditatorial brasileiro, por meses ou durante um, dois ou mais anos.

Em conclusão, assegurado o direito de pedir a reparação civil-constitucional, independentemente da punição ao agente da repressão ou da ação regressiva estatal contra o torturador, fica assegurada a proteção à dignidade do ser humano, seus valores morais e pessoais. E uma forma de reconforto e alento contra as marcas do passado é não deixar fechar o portão do tempo para que os danos causados a muitos brasileiros sejam reparados, missão que o Estado Brasileiro (em especial a Comissão de Anistia e o Poder Judiciário) deve cumprir fielmente.

 

* Publicado na Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, n. 6, junho de 2007, p. 77-81. (VSO)


[1] O art. 4º da Lei n. 10.875/2004, ao dar nova redação à Lei n. 9.140/1995, reconhece o fato, notório, de que pessoas: “por terem participado, ou por terem sido acusadas de participação, em atividades políticas, tenham falecido por causas não naturais, em dependências policiais ou assemelhadas”; “tenham falecido em virtude de repressão policial sofrida em manifestações públicas ou em conflitos armados com agentes do poder público”; “tenham falecido em decorrência de suicídio praticado na iminência de serem presas ou em decorrência de seqüelas psicológicas resultantes de atos de tortura praticados por agentes do poder público”.

[2] Apenas para explicar melhor, o prazo seria de dez anos, no caso de tortura após o advento do Código Civil de 2002, tempo máximo de prescrição, conforme determina o art. 205 desse Diploma Legal, não sendo esta a situação em tela, naturalmente, que remete para os atos ocorridos anteriormente.

[3] REsp 524.889/PR, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 01.09.2005, DJ 19.09.2005, p. 253; REsp 379.414/PR, Rel. Min. José Delgado, Primeira Turma, julgado em 26.11.2002, DJ 17.02.2003, p. 225.

[4] Também se incluem no rol da imprescritibilidade, segundo a Constituição Republicana de 1988: a prática do racismo (art. 5º, XLII) e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o estado democrático de direito (art. 5º, XLIV).

[5] Vale notar a observação de Elody Nassar, para quem, surgiram direitos sobre os quais em vão passa o tempo porque, apesar de não serem exercidos, jamais se lhes reconhece uma prescrição (…). Veja-se, por exemplo, o direito à liberdade, à vida, à integridade corpórea, à própria imagem, ao nome (NASSAR, Elody. Prescrição na Administração Pública. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 185-186).

[6] No REsp. 612.108/PR, sendo relator o Ministro Luiz Fux, asseverou-se: “Não há falar em prescrição da ação que visa implementar um dos pilares da República, máxime porque a Constituição não estipulou lapso prescricional ao direito de agir, correspondente ao direito inalienável à dignidade” (STJ, Primeira Turma, julgado em 02.09.2004, DJ 03.11.2004, p. 147).

[7] Defende-se ainda como aplicável à hipótese de tortura o disposto no art. 5º, XLIV, CF, que considera imprescritível “ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o estado democrático de direito”.

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