Artigos - O Juiz na Aplicação do Justo Processo

17/ 09 /2013

O Juiz na Aplicação do Justo Processo

INTRODUÇÃO

Constituiu notória conquista do direito o estabelecimento do processo como método e como meio de o Estado instituir a justiça com segurança ao cidadão.

Tempos depois de adquirido pelo povo o direito ao processo sobreveio outra considerável conquista: a constitucionalização do direito processual, antes afeto quase que exclusivamente à lei ordinária, com oferta à sociedade de um rol de garantias e direitos mais rígidos e mais estáveis.

O direito ao processo, incontestável progresso na história dos direitos do ser humano, conduz à consciência geral de que o cidadão merece receber a proteção estatal para a resolução de conflitos por meio de um juiz imparcial e mediante um método racional, público e democrático.

O processo, ao mesmo tempo em que precisa ser célere, também necessita respeitar o contraditório e a ampla defesa, a igualdade entre os litigantes, além de outras garantias processuais, especialmente as insertas na Constituição.

Não se impõe apenas ao juiz o dever de tomar decisões imparciais e justas. Impõe-se ainda ao administrador a atuação segundo a lei, concedendo aos interessados um procedimento sedimentado no contraditório, na igualdade e demais garantias processuais e constitucionais.

Aliás, muito antes da atuação do juiz e do administrador, o legislador já precisa editar normas obedientes aos direitos, antes denominados naturais, e também àqueles direitos já consolidados na relação jurídica posta, para não transformar o bem do processo no mau do arbítrio.

Assim se chega à noção de justo processo. É o direito ao método límpido, efetivo, envolto pelo contraditório e conduzido por um terceiro imparcial, o juiz, dentro de um prazo razoável, com preservação da ética, da igualdade, da publicidade, da fundamentação das decisões e de outras garantias inerentes ao estado democrático de direito, tudo a fim de bem servir a sociedade consumidora da jurisdição.

O justo processo se integra na nossa Constituição sob a denominação da cláusula do devido processo legal. Ou melhor, o justo processo ou devido processo deve ser regulado por lei e é de onde se irradiam outros princípios processuais constitucionais afinados com a dignidade da pessoa humana e com o direito à vida.

O justo ou devido processo decorre dos anseios e das necessidades do mundo atual onde ainda existe a abominável prática do terrorismo, a indesejável guerra entre Nações, a inevitável guerra civil, urbana e campesina, e, enfim, a triste violência generalizada entre os seres humanos.

 

1. ORIGEM DO JUSTO PROCESSO

Para o Adhemar Ferreira Maciel, ex-ministro do STJ e ex-desembargador federal do TRF 1ª Região, há uma probabilidade de o devido processo legal (due process of law) – que traz consigo a noção de justo processo –, ter tido origem no direito natural.

Eis suas palavras:

Se começarmos a espiolhar muito o instituto do devido processo legal, que hoje se acha formalmente inserto em nossa Constituição Federal (art. 5°, inc. LIV), veremos que ele se remonta a mais de 5 séculos antes da era cristã. Na “Antígona” de Sófocles, peça estreada em Atenas, presumidamente no ano de 441 a.C. já se invocavam determinados princípios morais e religiosos, não escritos, que podiam ser opostos à tirania das leis escritas[1].

 

Prevalece, porém, o entendimento de que o princípio do devido processo se originou na Inglaterra do Século XIII, para depois ser alçado à Carta Magna de 1.215, no momento em que os senhores feudais obrigaram o Rei João Sem Terra a respeitar os direitos dos cidadãos ingleses, entre os quais o de serem julgados pelas leis do país.

Tratava-se de um implacável tirano que, além de outras arbitrariedades, exigia impostos elevados do povo. Depois de muito embate foi assinada a Magna Carta (Great Charter), pela qual o Rei João jurou respeitar as imunidades e a liberdade dos insurrectos barões ingleses[2].

A fórmula, porém, na versão ainda atual, entrou pela primeira vez no Estatuto emanado do Rei Eduardo III, em 1354, aplicando-se extensivamente a qualquer categoria de súditos e não somente aos homens livres[3].

Posteriormente o devido processo legal estendeu-se para a colônia inglesa na América, vindo a ser, depois, inserido na Constituição dos Estados Unidos, como se pode verificar das Emendas V e XIV da Constituição Americana:

Nenhuma pessoa será obrigada a responder por um crime capital ou infamante, salvo por denúncia ou pronúncia de um grande júri, exceto nos casos em que, em tempo de guerra ou de perigo público, ocorram nas forças terrestres ou navais, ou na milícia, quando em serviço ativo; nenhuma pessoa será pelo mesmo crime submetida duas vezes a julgamento que lhe possa causar a perda da vida ou de algum membro; nem será obrigado a depor contra si própria em processo criminal, ser privada da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal; a propriedade privada não será desapropriada para uso público sem justa indenização (Emenda V).

Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãs dos Estados Unidos e do estado em que residem. Nenhum Estado fará ou executará qualquer lei restringindo os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos, nem privará qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal, nem negará a qualquer pessoa, dentro de sua jurisdição, a igual proteção das leis (Emenda XIV).

 

Na atualidade, o due process of law recebe diversos nomes, dependendo do país, sendo chamando justo processo, faires Verfahren, devido processo legal, debido processo, processo équo, processo limpo, entre outros[4].

A fórmula inglesa se transforma em preceito jurídico fundamental inserido em muitas constituições, sobretudo após a segunda Grande Guerra, que deixou como legado o desprezo à vida humana, a experiência do genocídio, da tortura e do extermínio de inocentes, ou seja, a experiência de total desrespeito à vida por parte do Estado, no lugar da sua natural função: trazer paz e felicidade geral.

A Constituição Espanhola de 1978 contém previsão, embora implícita, do devido processo, ao estipular o direito do cidadão de obter a tutela efetiva dos juízes e tribunais no exercício de seus direitos e interesses legítimos, sem que, em nenhum caso, alguém possa ficar sem defesa. Lá a Constituição garante o direito ao julgamento por um juiz predeterminado em lei, à defesa e à assistência judicial, a informação da acusação, bem como o direito ao processo público sem dilações indevidas, com todas as garantias, o direito à prova necessária para a defesa e, finalmente, o direito à presunção de inocência.

Na Constituição Italiana, a Emenda n. 2/1999 introduziu o princípio denominado justo processo, pelo qual se garante a concreta jurisdição, com a imposição do contraditório, da igualdade, da imparcialidade e da razoável duração procedimental (§ 2º do art. 111).

No Brasil, o direito ao justo (ou devido) processo passou a constar da Constituição Federal de 1988, cujas normas asseguraram os direitos à vida, à propriedade, à liberdade e à igualdade, não podendo ninguém ser privado desses bens sem processo, nos termos da lei e perante a autoridade prévia e constitucionalmente investida na função de julgar (art. 5o, caput e inc. LIV).

 

2. DUALIDADE DO JUSTO PROCESSO

O princípio denominado devido processo, justo processo ou due processo, decorre da aplicação de ideais de justiça para proteção dos direitos humanos contra a atuação arbitrária do Estado.

Como afirma o jurista italiano Paolo Tonini, o justo processo se refere ao conceito de ideal de justiça, pré-existente à lei e intimamente ligado a direitos invioláveis das pessoas da relação processual garantidos na Constituição[5].

Cuida-se de princípio fundamental, alicerce de inúmeros outros mandamentos. Apresenta sintonia com a garantia democrática para o cidadão obter do administrador, do legislador e do julgador o respeito a essenciais postulados que lhes são reconhecidos em tratados internacionais e na Constituição Republicana.

O devido (justo) processo constitui a base dos direitos e garantias individuais e coletivas contra qualquer atuação perniciosa ou arbitrária do poder, aliás, poder escolhido pelo próprio cidadão.

Assinala juiz federal (aposentado) Paulo Fernando Silveira que o devido processo legal tem demonstrado no decorrer dos séculos uma atuação por demais ampla, a ponto de se minimizar a presença de outros direitos individuais, pois o direito à igualdade, o direito à vida, à liberdade e demais direitos constitucionais, foram abarcados pela cláusula do devido processo[6].

Com efeito, a Constituição Federal em vigor, ao consagrar tais direitos fundamentais, proibiu ainda restrições legais à liberdade e aos bens das pessoas sem o processo legal devido, o que tornou ampla a noção e os lindes do justo processo.

Em especial na doutrina norte-americana entende-se que tal princípio deve ser visto sob dois enfoques, ou seja, o enfoque processual (procedural due process of law) e o material (substantive due process of law).

Quanto ao enfoque substantivo, dá-se à atenção ao núcleo do justo processo sem se preocupar com a regulagem por lei e por outro lado se impõe à lei também a atender aos ideais de justiça. Nesse ponto, é de se perguntar qual seria o grau de influência de tal princípio constitucional em relação ao sistema jurídico brasileiro, cuja lei é a fonte primária do direito, enquanto os princípios jurídicos gerais e a equidade são fontes secundárias.

Sob o ângulo processual, judicial e administrativo, entende-se que ninguém pode ser julgado, condenado ou despojado dos seus mais valiosos e fundamentais bens jurídicos, sem ser ouvido em processo regular. Destarte, aqui a lei deve regular o processo e deve regulá-lo dando garantias constitucionais ao jurisdicionado, isto é, garantias justas.

 

3. JUIZ E JUSTO PROCESSO

O justo processo ou devido processo, no sentido material, identifica-se com o chamado princípio constitucional da razoabilidade ou da proporcionalidade e têm como assento o art. 5º, caput, da Constituição Federal de 1988.

O susbstantive due process of Law se caracteriza, segundo Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci, pela edição de lei, elaborada de acordo com os parâmetros de justiça, correta e regularmente, e servil à Constituição[7].

Para haver justiça no processo, primeiro deve haver a garantia de que a lei é fonte de validade das normas do processo, não podendo haver regramentos de direito processual por medidas provisórias ou por decretos. Aliás, a Carta Magna veda a possibilidade de edição de medida provisória sobre direito processual penal e processual civil (alínea b, § 1º, art. 62, CF/88). Não fere o devido processo o trabalho de produção preenchimento de lacunas legislativas por regimentos de tribunais, quando regula regras procedimentais. Não pode, porém, a lei ser violada com a atividade de legislar das Cortes.

A aplicação pelo Judiciário do justo processo é indispensável para integridade de irrenunciáveis direitos da pessoa humana. No direito penal – que também não pode ser objeto de medida provisória (alínea b, § 1º, art. 62, CF/88) –, apenas para exemplificar, o justo processo rejeita o tratamento degradante ao réu, a punição criminal sem previsão legal e sem processo, bem como estabelece a presunção de inocência antes da decisão por juiz competente e imparcial.

O devido processo, no seu sentido material, repudia leis capazes de violar as garantias fundamentais dos contribuintes, dos idosos, das crianças, dos estrangeiros, do consumidor, e ainda das minorias, pois o Estado deve respeitar o núcleo mínimo de ética e de justiça inserido nos direitos humanos.

Eis a razão pela qual o juiz brasileiro deve averiguar se o processo de formação da lei foi justo em face das diretrizes fornecidas pela Constituição. Melhor dizendo, o princípio da legalidade deve ser analisado em confronto com as garantias constitucionais. Se a norma infraconstitucional violar a razoabilidade na sua criação, o sentimento comum e geral de justiça e os princípios constitucionais, o magistrado não deve aplicá-la, mas afastá-la e considerar não ter havido naquele caso a incidência de tal norma, porque violou a Constituição.

Cabe ao julgador averiguar se o processo de formação legal foi justo, se o processo administrativo foi devido e se o processo Judiciário foi adequado, fazendo um juízo de valor do que seja devido, em confronto com a norma constitucional. Nessa dificílima função, cabe-lhe analisar a proporcionalidade e a racionalidade da norma, do ato administrativo e da decisão judiciária, regras obrigatórias e necessárias para a manutenção do equilíbrio entre os Poderes constituídos.

No entanto, o senso do justo não pode ser interpretado como sentimento personalíssimo e particular, com fundamento apenas na visão individual de justiça, segundo a ótica peculiar do magistrado, sob pena de incorrer no mesmo risco do arbítrio e da violação ao devido processo.

O justo processo, no seu aspecto substancial, centrado como está na Constituição, deve ser interpretado em face das normas constitucionais. Incumbe ao intérprete analisar a norma, mediante o senso geral, comum e costumeiro, à luz dos raios inevitáveis do grande círculo de fogo da constitucionalidade.

Com essas considerações, com cuidado e atenção o integrante do Poder Judiciário pode, em cada situação específica, averiguar se a cláusula constitucional do justo processo foi transgredida, sem ignorar naturalmente a ordem jurídica e o estado de direito, em atenção somente à sua íntima convicção. Quando o juiz obedece a valores individuais e despreza valores gerais humanitários, em vez de salvaguardar o devido processo, corre o risco de estar praticando, na verdade, graves injustiças e transgressões ao estado democrático de direito. Bem se demonstra na teoria tridimensional, o direito não é somente norma e valor, mas também fato social, ou melhor, nos dizeres do saudoso jus-filósofo Miguel Reale, o direito é “integração normativa de fatos e valores”[8].

Uma aplicação errônea do postulado do justo processo pode causar danos à segurança jurídica, sendo de se questionar quais garantias terão os cidadãos perante um Judiciário que desrespeita o ordenamento constitucional-legislativo e o sistema hierárquico de normas, sem que apresente motivação suficiente para tanto.

É claro que essa obediência à Lei não é radical e inflexível. O juiz possui margem de liberdade de convencimento na interpretação legal, conforme os instrumentos existentes no momento do julgamento. Aliás, pontua Cândido Rangel Dinamarco, “processo justo é o que produz soluções justas”[9] e para essas soluções o magistrado deve ter liberdade para decidir.

De todo modo, o juiz é o guardião do devido processo com o amparo na Constituição, para não quebrantar o princípio da independência entre os poderes e o próprio sistema positivo estatal, cujo cume é aquela preciosa Cartilha de Direitos.

Sem dúvida, o inc. LIV do art. 5° da Constituição se tornou preceito útil e de obrigatória vigilância. É o fiel da balança do sistema da legalidade estrita, quando impõe o exame da inconstitucionalidade incidenter tantum do processo de formação da lei, especialmente quando a norma possa vir a malferir direitos humanos, tais como a vida e a liberdade, assim como quando possa vir a desrespeitar outras normas constitucionais protetoras do indivíduo e dos demais entes da sociedade destinatária.

Por fim, na obediência ao justo processo de formação da lei (devido processo ou justo processo legal material) ao juiz incumbe recusar a aplicação da norma injusta e transgressora dos preceitos maiores destinados a proteger os direitos humanos e as garantias do cidadão contra as mazelas deletérias da arbitrária atuação estatal. Pode fazer tal recusa por meio de uma operação mental objetiva e fática, pois lhe cabe seguir o comando maior de justiça e de equidade perante o qual nenhuma norma, mesmo formalmente perfeita, está a salvo da orientação constitucional. Assim agindo, o juiz atende aos direitos fundamentais previstos na Magna Carta.

 

4. APLICAÇÃO PROCEDIMENTAL DO JUSTO PROCESSO

O justo processo, no seu aspecto procedimental se refere à atuação do Judiciário, internamente, pela vias recursais do processo judicial e, externamente, pelo seu controle da atividade procedimental administrativa.

Examinando esse quadro, sob a ótica da Constituição Norte-Americana, o processualista espanhol Iñaki Esparza Leibar sintetiza suas garantias como sendo direito a um processo rápido e público, direito a um jurado imparcial e a um juiz natural, direito de informação e de acareação com as testemunhas e direito à assistência técnica. E acrescenta que a finalidade do proceso debido constitui a essência da garantia de um juízo limpo para as partes, em especial no procedimento acusatório penal, porquanto a função jurisdicional aplicada de acordo com suas diretrizes atenua o risco de resoluções injustas[10].

Mas não é somente isso, para ser justo o processo deve ensejar segurança e satisfação plena aos jurisdicionados. Segurança, com os cuidados necessários na condução e nas decisões judiciais de acordo com os princípios constitucionais; satisfação plena aos jurisdicionados, pela oferta de um serviço com rapidez e aplicação efetiva das regras processuais.

Para ser justo, o processo de resolução de controvérsias precisa ser praticado de acordo com as garantias constitucionais: conservar o direito de defesa, a imparcialidade do julgador, a igualdade e a ética, a celeridade, a efetividade das normas processuais, a adequação e a publicidade, apesar das exceções legítimas. O julgador precisa adubar o terreno para fazer nascer um veredicto reto, ético e justificado, sendo imprescindível o humo da probidade, material útil para o juízo da verdade, isto é, evitando-se deturpações, erros ou desvios de finalidade da justiça.

Consoante o inciso LV do art. 5º da Constituição Federal, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

O contraditório consiste no direito de o litigante ser ouvido no processo e no de ter oportunidade para reagir nos autos. O exercício do contraditório implica oitiva, citação, intimação, notificação, enfim, ciência pelo interessado dos atos processuais que lhe dizem respeito, do início ao fim de todo e qualquer procedimento. Por isso se diz, o processo precisa do permanente diálogo entre o juiz e as partes visando à tutela jurisdicional justa e mais condizente com a verdade.

Compete ao juiz assegurar o contraditório e a ampla defesa dando a cada litigante os meios de receber a tutela adequada.

Segundo o inc. LV do art. 5° da Constituição de 1988, o contraditório e a ampla defesa têm presença garantida no processo judicial e também no processo administrativo, funcionando como preceitos limitadores de abusos e a serviço da proteção da esfera jurídica das partes litigantes, especialmente do réu, a quem não se pode vedar o acesso ao Judiciário, com os recursos legais disponíveis.

Daí ser correta a generalizada afirmação segundo a qual um dos mandamentos mais invocados pelas partes, constituindo mesmo a essência da atividade judicial, é o contraditório, porque ação sem dialética pode significar qualquer outra coisa, menos o que se considera política e juridicamente ser o processo.

O contraditório, como atuação desse colóquio processual, implica direito do demandante, sobretudo do réu, de ser ouvido e cientificado da realização dos acontecimentos processuais a ele relacionados, isto é, que lhe possam favorecer ou prejudicar, cabendo-lhe o ônus de aceitar ou impugnar as alegações contra si produzidas.

Fazer incidir o contraditório não significa somente ser destinatário de petições, requerimentos, aditamentos, memoriais e recursos interpostos pelos litigantes. A observância do contraditório pede atuação judicial firme e contínua na busca da isonomia entre as partes, sem que haja espaço para manifestações ou provimentos isolados ou escusos, capazes de descaracterizar a ética processual e de influenciar maleficamente no veredicto.

Quando se faz imperioso, ao juiz é dado, antes de decidir, ouvir os sujeitos interessados, em qualquer fase procedimental, oralmente ou por escrito, evitando a ocorrência de surpresas e contratempos no curso processual.

A oitiva em audiência, por exemplo, ajusta-se ao justo processo. Também a conciliação é princípio fundamental expresso no Código de Processo Civil, onde as partes podem manifestar-se e tentar a resolução amigável, o que se faz em atendimento à economia, à celeridade e à efetividade da atividade jurisdicional. A conciliação em audiência leva ao fim do litígio transportado ao juízo, pois, dada a sua ocorrência, as partes saem da audiência geralmente satisfeitas, mesmo havendo concessões mútuas, reconhecimento pelo réu do pedido ou renúncia ao direito por parte do autor.

Paralelamente ao audiata altera pars, o devido processo exige a igualdade das partes ou paridade de armas, como se diz em jargão processual, conquanto o contraditório já facilite a aplicação de tal princípio, uma vez que a dialética dá oportunidade de manifestação dos interessados de forma harmônica e isonômica.

Por igualdade entende-se o tratamento equilibrado entre os litigantes, com proibição da prática de concessão de privilégios ou de prerrogativas injustas, que violem a regra do dar a cada um aquilo que lhe pertence na medida do seu direito.

Não se pode deixar de reconhecer, porém, ser muito delicada a “tarefa de reequilíbrio substancial, a qual não deve criar desequilíbrios privilegiados a pretexto de remover desigualdades”[11].

Preservação da igualdade possibilita atuação jurisdicional sem privilégios a uma das partes, pois todos possuem os mesmos direitos, as mesmas obrigações e os mesmos deveres, salvo exceções legais aceitas pelo bom senso e pelo interesse público. Aliás, “só assim se terá a razoável certeza de que a decisão da justiça não foi fruto da esperteza de uma das partes, mas fruto de um debate jurídico igual”[12]. Mesmo porque a “atuação judicial burocrática e que se renda ao legalismo da igualdade meramente formal e nominal, acaba pondo em dúvida a imparcialidade e a independência do juiz”[13].

A igualdade precisa acontecer no conhecimento e nas oportunidades de atuação. É inaceitável a influência do poder econômico ou da influência do superior preparo técnico do representante de uma das partes, capaz de colocar o outro lado em posição de desvantagem processual, fator prejudicial à aplicação judicial do direito e da verdade.

A isonomia se apresenta como princípio imanente ao devido processo, porque exige que as partes estejam no mesmo degrau jurídico para tornar equilibrada a relação processual.

A igualdade se assenta no caput do art. 5o da Constituição, no qual se põe de acordo com o justo processo. Daí ser importante ocorrer, em abstrato, a isonomia perante a lei e perante o órgão julgador, no caso concreto. Aliás, o legislador e o julgador estão aptos a realizar a desigualdade aparente como modo de alcançar uma norma equânime e uma justiça igualitária.

Diante da situação concreta é encargo do juiz dispensar tratamento equânime às partes e agir de forma a que a desigualdade inerente às pessoas não seja elemento de flagrantes injustiças estampadas no processo. Assim, para atuar em consonância com a igualdade processual, toca-lhe o dever de assegurar aos litigantes os meios necessários para poder consagrar vencedor da disputa do bem jurídico quem tem razão e não quem que, por qualquer outro motivo, tente fazer prevalecer sua posição de superioridade na relação processual. Por isso é abominável que quem possui mais arsenais jurídicos (por exemplo, sua qualidade de grande empresa, pública ou privada) receba uma injustificável proteção processual em detrimento de quem se encontre numa relação de inferioridade (por exemplo, o autor, cidadão pobre e analfabeto, que possui naturais dificuldades econômicas e de conhecimento para acionar em juízo um litigante forte e habitual).

Outro mandamento do justo processo é a ética. As partes devem atuar com respeito umas às outras, com respeito às atividades judiciais legítimas e conduzir-se em todo o processo, seja em audiência, seja na produção de prova, nas petições e nos arrazoados de maneira verdadeira e fiel aos princípios da moralidade.

A moralidade nos atos do Poder Público é tão importante ao Direito que o legislador brasileiro previu a possibilidade de o próprio cidadão promover a ação popular em defesa da ética administrativa, o que denota a democracia no Judiciário e sua proximidade com o justo e adequado processo.

A justiça processual também obriga o juiz a aplicar a lei devida para cada caso, obedecendo aos princípios consagrados na Constituição. Incumbe-lhe o respeito a direitos e garantias dos litigantes, como a plenitude de defesa no processo penal, a igualdade perante a lei processual e a ética judiciária, princípios destinados a possibilitar julgamentos imparciais, proferidos por órgão independente e competente, mas com respeito aos direitos das partes.

É, assim, dever do julgador cumprir as normas processuais de acordo com os mandamentos constitucionais, não deixando que as primeiras afrontem estes.

O justo processo também tem como requisitos os princípios da economia e celeridade processuais, no sentido de ofertar ao jurisdicionado um processo praticado dentro da razoabilidade de prazo, com o aproveitamento máximo dos atos processuais, isto é, com plena efetividade das normas.

A Constituição Espanhola já concede a todas as pessoas o direito de recebimento da prestação judicial num processo sem dilações indevidas e com todas as garantias.

O direito ao término do processo em tempo desejável, previsto em muitas constituições, também está consagrado na Convenção Européia de Direitos Humanos e na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, de 1969), esta ratificada pelo Brasil em 1992.

Com a Emenda n. 45, de 2004, a Constituição Brasileira passou a assegurar explicitamente a qualquer pessoa, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração do processo e os meios garantidores da celeridade em sua tramitação.

Esse enunciado visando à rapidez e à efetividade da jurisdição é um importante elemento de contribuição para um processo público com justiça. Trata-se de considerável avanço legislativo, pois com o direito constitucional à justiça célere, o Estado passa, à evidência, a ter o dever de observá-lo e fazê-lo ser obedecido, a fim de que o justo processo se aproxime cada vez mais da aspiração da sociedade brasileira de ter um Judiciário ao mesmo tempo rápido e criterioso na sua atuação.

A transgressão do direito ao julgamento célere possibilita ao cidadão exigir do Estado uma proporcional reparação pelos danos causados pela morosidade, isto é, pelo mau funcionamento da máquina estatal, que deixa de respeitar os direitos individuais, os bens e a propriedade protegida constitucionalmente. Acima de tudo é direito do cidadão obter um processo sem dilações indevidas, com bem estabelece a Constituição Brasileira, após o advento da Emenda Constitucional n. 45, de 2004.

Por outro lado, para se alcançar essa razoável duração do processo o sistema judicial possui instrumentos visando à rapidez, mesmo que indiretamente. Não é sem razão que existem as tutelas urgentes, como o instituto da tutela antecipada e a liminar em mandado de segurança, além de tantos outros mecanismos aptos a atuarem como antídoto contra a morosidade na realização da justiça.

Ao lado da celeridade é necessário que as normas processuais sejam efetivas. Não adianta decidir quem tem razão se o Estado não entrega logo o bem jurídico ligado à controvérsia. Também não adianta eleger documentos com conteúdo máximo de proteção estatal e de presunção jurídica, como o cheque, a escritura pública assinada pelo devedor e a certidão da dívida ativa da Fazenda Pública, além de outros títulos extrajudiciais, se o Estado não oferece ao cidadão um procedimento executivo célere, prático, informal.

É claro que na atividade executiva deve ser mantido o contraditório e a segurança jurídica. Mas os meios executivos devem ser eficazes e a atuação executiva deve prontamente satisfazer e proteger direitos.

Ademais, o princípio do tempo razoável da duração processual é norma constitucional que exige uma maior organização e melhoria dos trabalhos forenses, e para a sua aplicação há necessidade de se sopesar a sua incidência em face de outros princípios processuais constitucionais, como o da ampla defesa entre alguns outros.

Enfim, justo significa o processo acessível à população em geral, correto e seguro em todo o seu transcurso, rápido o suficiente, sem que menospreze o direito de defesa e a igualdade entre as partes.

 

CONCLUSÃO

O justo processo cognitivo, cautelar e executivo e outros princípios derivados do devido processo constituem a garantia de um processo democrático, transparente, célere e ético.

É direito constitucional do jurisdicionado que tais mandamentos maiores de eqüidade e de cidadania estejam presentes em toda e qualquer relação processual, com o escopo de eliminar ou evitar a atividade judicial tendenciosa a uma das partes e ainda obscura e arbitrária, onde prevaleça o mais forte, causando com isso prejuízos morais, econômicos, jurídicos e políticos para todos.

O respeito ao devido processo é imprescindível, mas não deve levar ao radicalismo de tornar o Estado-Juiz protetor de abusos, desrespeitador da lei e da Constituição e ele próprio fator de infração à ordem jurídica, na contramão de fins estatais como os de ofertar segurança, justiça e liberdade ao povo.

A obediência ao justo processo significa prevalência de norma de hierarquia superior no ordenamento jurídico e a concepção de que princípios são inspirações de justiça e de ideais do constituinte brasileiro de 1988. Por conseguinte, o justo processo decorre da norma, mas não de qualquer emanação de vontade; seu fundamento de validade encontra-se, sim, numa lei que respeite os direitos humanos e outros bens tão caros aos indivíduos como liberdade, igualdade e a vida.

A exigência do justo processo, assentada na Constituição de 1988, impõe que na busca da solução dos conflitos por meio do Estado, o juiz, as partes, as testemunhas e os demais colaboradores do Poder Judiciário pratiquem atos processuais em obediência às normas constitucionais e à legislação entrosada com a Carta da República.

O juiz toma suas decisões seguindo as regras legais e os princípios constitucionais, sem deixar de levar em consideração a eqüidade e a retidão, que devem envolver toda decisão judicial. Por tal razão, um provimento judicial necessita encontrar-se em consonância com a justiça e precisa ser feito no tempo apropriado do procedimento e da decisão, assegurando-se a ampla defesa e outras claras garantias às partes, em benefício sempre da sociedade.

Ao se preservarem as regras de efetividade, imparcialidade e de ética muito ganha o Poder Judiciário, o jurisdicionado e o próprio Estado, pelo fato de ensejar um processo sem mazelas, onde o juiz, antes de ser um definidor de quem deve vencer o conflito, se torne uma fonte de concórdia e de paz.

O devido processo é indispensável para, com mais facilidade, o julgador alcançar a verdade, dando as mesmas oportunidades às partes e atuando sobre o império da noção de certo e errado, sem extrapolação da sua atividade, com o respeito aos direitos individuais e coletivos.

Em suma, o direito ao justo processo é princípio protetor aos jurisdicionados contra o risco da atuação arbitrária, quer do legislador, na edição da lei, quer do juiz, na condução do processo, quer do administrador, na prática de atos administrativos, transformando-se assim em medida eficaz para frear excessos e fazer vir à tona a liberdade e a justiça a todos.

Ao mesmo tempo constitui arma à disposição dos juízes para satisfazerem direitos e interesses legítimos com e pelo processo. Além disso, concluindo com Paulo Fernando Silveira, o devido processo significa liberdade, sendo “possível ao Judiciário realizar, por completo, o sonho dos inconfidentes mineiros: libertas quae sera tamen (liberdade ainda que tardia). Esse sonho, agora transformável em realidade concreta, é hoje, o de todo brasileiro”[14].

 

* Vallisney de Souza Oliveira (VSO). Publicado na Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, n. 1, ano 20, Brasília, Janeiro de 2008, p. 38-46.


[1] MACIEL, Adhemar Ferreira. O devido processo legal e a Constituição Brasileira de 1988. Revista de Processo n. 85. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan.-mar., 1997. p. 176.

[2] SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. p. 22.

[3] COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie costituzionali e “giusto proceso” (modelli a confronto). Revista de Processo n. 90. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr.-jun., 1998. p. 102

[4] Idem, ibdem, p. 106.

[5] TONINI, Paolo. A prova no processo penal italiano. Trad. MARTINS, Alexandra; MRÓZ, Daniela. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 21.

[6] SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. p. 291.

[7] TUCCI, Rogério Lauria; TUCCI, José Rogério Cruz e. Constituição de 1988 e Processo. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 15.

[8] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 67.

[9] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2005. v. 1. Prefácio.

[10] LEIBAR, Iñaki Esparza. El principio del proceso debido. Barcelona: José Maria Bosch, 1995. p. 75-76.

[11] CINTRA, Antônio Carlos; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 18ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 55.

[12] PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 42-43.

[13] idem, ibdem, p. 44.

[14] op. cit. p. 295.

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