Artigos - Locução “posto que” na Linguagem Jurídica

04/ 09 /2013

Locução “posto que” na Linguagem Jurídica

Vallisney de Souza Oliveira*

 

Existem certas locuções na linguagem forense, das quais, acatando os ensinamentos de conspícuos autores, evito fazer uso. Tais são, por exemplo, vez que e de vez que, no lugar de uma vez que e face a, no lugar de em face de.

Outra locução amiúde empregada erroneamente em petições, sentenças acórdãos e pareceres é posto que no sentido de porque, porquanto, visto que, isto é, como conjunção causal ou explicativa.

Já li diversas decisões em que o juiz assevera: “A lei tal é inconstitucional, posto que viola o princípio da ampla defesa e do contraditório.” “O autor não tem direito ao benefício, posto que já o recebeu”. Não é difícil encontrar também o mau emprego do posto que em artigos e até em livros de Direito.

Diante do uso generalizado do posto que como porque, porquanto, visto que, até cheguei a pensar que essa locução pudesse ter mesmo o significado de porque, porquanto, visto que e não haveria razão para rejeição ou prevenção contra seu uso. Baseava-me em que, como sempre ouço, o mais importante é ser claro, fazer-se entender, comunicar…

Cheguei a cogitar de que a locução posto que significasse embora apenas na língua de épocas passadas, não sendo mais utilizada em sentido causal na linguagem culta dos nossos dias.

É que posto que como conjunção concessiva é encontrada largamente nos Sermões do Padre Antônio Vieira e nas Consolidações das Leis Processuais de Joaquim Ribas.

Barão de Ramalho, jurista antigo, doutrinava: “É admissível esta ação somente entre as próprias partes contratantes, endossadoras de letras e papéis de crédito, não entre outros, posto que herdeiros sejam” (Barão de Ramalho. Praxe brasileira, 2a ed., São Paulo: Duprat & Comp., 1904. p. 388). Isto é, mesmo entre herdeiros não seria possível esta ação, somente admitida entre as próprias partes.

Já de longa data, onde quer que encontre escrito posto que, sinônimo de porque, adquiri o hábito de sublinhar e substituir essa locução por visto que ou por outra do mesmo sentido, até para poder entender mais prontamente o que está escrito.

Em frases como “não se trata de direito adquirido, posto que não há direito adquirido contra a Constituição”, ocorre-me às vezes eliminar posto que e exprimir a idéia causal em oração introduzida pela preposição por ou locução equivalente: “não se trata de direito adquirido, por não haver direito adquirido contra a Constituição”.

No Dicionário de Aurélio Buarque de Holanda, notavelmente aberto a novas expressões, mais uma vez se comprova que o termo posto que é usado errônea e equivocadamente, pois, como registra o ilustre lexicógrafo, posto que significa “ainda, se bem, embora, posto.” E posto, segundo o mesmo Dicionário, tem o mesmo sentido de posto que.

Aurélio abona a observação com exemplo de Machado de Assis, em A ressurreição (p. 32): “Como caráter, fazia-lhe a mãe grandes elogios, e eram fundados, posto fossem de mãe.” Ou seja, os elogios maternos tinham fundamento, embora (conquanto, se bem que) fossem elogios de mãe.

Geraldo Amaral Arruda, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, ensina em A Linguagem do Juiz (São Paulo: Editora Saraiva, 1996, p. 109) que a locução posto que não deve ser empregada como causal, mas como concessiva, e se usa com o verbo no subjuntivo: “Posto que fosse tarde, o magistrado mesmo assim continuou a audiência”.

José Maria da Costa (Manual de Redação Profissional. Campinas/SP: Editora Millenium, 2002, p. 1070) informa que o filólogo A. M. de Sousa e Silva insere também a locução posto que “no rol de concessivas”, o que este exemplifica com o seguinte excerto do escritor português Camilo Castelo Branco: “Posto que o vosso sangue me não corra nas veias, sou vosso neto pelo sacramento que me liga à mui nobre dama”. Segundo a mesma fonte citada por José Maria da Costa, o romancista luso observou ser “grave incorreção, assaz frequente no Brasil, empregar posto que como conjunção causal ou como conjunção explicativa”.

Com base em outros autores, José Maria da Costa dá exemplos do emprego correto na legislação brasileira, como se vê do art. 1.046 do CPC (embargos de terceiro), no qual a palavra posto (igual a posto que) é utilizada como conjunção concessiva, isto é, significando embora, conquanto, ainda que, se bem que. “Equipara-se a terceiro a parte que, posto figure no processo, defende bens que não podem ser atingidos pela apreensão judicial”.

Por outro lado, pude constatar que o emprego de posto que como causal não ocorre somente em textos jurídicos, mas também em poemas e textos de ficção, como se vê no antológico Soneto da fidelidade, de Vinícius de Moraes: “E assim, quando mais tarde me procure / Quem sabe a morte, angústia de quem vive / Quem sabe a solidão, fim de quem ama / Eu possa me dizer do amor (que tive): / Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure”.

Nos versos finais do poema, o poeta reconhece que o amor não é imortal, porque, como a chama, é fugaz. Postula, entretanto que, por ser efêmero, que seja o sentimento amoroso infinito enquanto dure. Os amantes devem amar-se intensamente, enquanto o amor está vivo. Porque, como a chama, o amor se extingue.

Relembrando passadas aulas na Universidade Federal do Amazonas, o estimado amigo Professor Carlos Gomes disse-me que posto que, com a significação de porque, porquanto, visto que, é, segundo os autores, influência do espanhol, língua em que essa locução tem sentido causal. Porém alertou que, dado o uso generalizado, é praticamente irreversível o seu emprego para ligar a oração causal à sua principal. Sem prejuízo de também introduzir oração concessiva. Por ora deve equivaler a embora, se bem que (como concessiva), mas frequentemente ocorre em lugar de porque, porquanto (como causal). Como concessiva, o verbo da oração estará no subjuntivo. Como causal, no indicativo.

Entretanto, sem querer ser purista no uso do vernáculo, continuarei relutante, seguindo os autores que recomendam evitar o emprego de posto que como conjunção causal ou explicativa. Posto não desejasse, sei, entretanto, que os fortes ventos do uso acabarão soberanamente apagando a renitente chama de minha relutância.

 

* Publicado na Circulus – Revista da justiça Federal do Amazonas, v. 3, n. 6, jul.-dez. de 2005, p. 205-208. (VSO).

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