Artigos - Justiça Itinerante

15/ 09 /2013

Justiça Itinerante

Na bela canção Pelos bailes da vida, Milton Nascimento entoa que todo o artista tem de ir onde o povo está, porque para cantar nada é longe, nem que se siga por estrada de terra na boleia de caminhão e com a alma repleta de chão a fim de buscar o caminho que vai dar no sol. Passando da música para o Direito, é inegável que a Justiça Brasileira há muito tempo deve fazer como o artista, indo para perto do povo em vez de ficar à espera, sempre, dos interessados.

Felizmente a Constituição Federal de 1988, após a Emenda Constitucional n. 45/2004, previu a instalação e o funcionamento da justiça itinerante, pelos Tribunais Regionais Federais (§ 2º do art. 106), pelos Tribunais do Trabalho (§ 1º do art. 115) e pelos Tribunais de Justiça (§ 7º do art. 125), a fim de realizar audiências e outras funções jurisdicionais inerentes a cada um daqueles órgãos, nos limites territoriais da respectiva jurisdição, servindo-se inclusive de equipamentos públicos e comunitários.

Nesse contexto, trata-se de útil novidade a previsão constitucional da possibilidade de os tribunais instaurarem a justiça descentralizada e provisória fora da sede dos juízos. Aliás, a mesma Constituição (art. 93, VII) impunha, como regra, aos juízes o dever de moradia na comarca para assim poderem integrar-se na comunidade na qual irão exercer jurisdição e conhecerem a realidade do povo, seus costumes e seus problemas.

Pondere-se que o princípio da inércia da jurisdição não é violado com a presença efetiva da justiça, uma vez que o ato de chegar, chamar e colocar-se à disposição do jurisdicionado visando à resolução do litígio não significa parcialidade. Muito pelo contrário, implica cumprir o princípio constitucional do acesso à justiça, inclusive porque os tempos atuais exigem um Judiciário atuante e marcante no processo e não simplesmente uma inacessível Deusa de Pedra do conflito. Para isso a prestação de serviço itinerante é imprescindível em todos os lugares também pelos órgãos essenciais à justiça, sobretudo Defensorias Públicas, Ministério Público e advocacia pública e privada.

Grande caminho para o encontro com o povo já foi feito intensamente e mais de perto com a atuação dos Juizados Especiais para causas de menor complexidade (cíveis) e de menor potencial ofensivo (penais), conforme prevê a Constituição Brasileira, regulamentada pela Lei n. 9.099/95, no âmbito estadual, e pela Lei n. 10.259/2001, no âmbito federal. De fato, tendo a participação de diversos colaboradores, como conciliadores, estudantes universitários, peritos e outros, os Juizados Especiais não exigem a presença obrigatória de advogado, incentivam o acordo e concedem aos julgadores o poder de se guiarem mais pela equidade e menos pelo positivismo e mais pela realidade da vida e menos pelo formalismo dos autos.

Implantados como estão os Juizados Especiais, nas ordinárias sedes dos Juízos, sobressai essa outra aspiração: tornar a Justiça cada vez mais descentralizada e interiorizada, num movimento contínuo em proveito dos habitantes de fora dos centros urbanos, fazendo com que a justiça chegue às áreas carentes, aos arrabaldes esquecidos, aos povoados perdidos e às sociedades quase inacessíveis. A propósito, os Tribunais Regionais já iniciaram essa experiência feliz com a justiça itinerante. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, por exemplo, englobando treze unidades da Federação e ainda o Distrito Federal, constantemente põe em funcionamento por tempo curto e determinado os juizados federais nos mais longínquos locais do norte, nordeste, centro-oeste e sudeste, principalmente para processo e julgamento de causas previdenciárias.

É o serviço jurídico itinerante, que passa a ser não apenas destinado à população urbana, mas também ao povo do interior deste rincão brasileiro, ao povo das comunidades precárias, merecedor também de uma vida digna e de paz. O Judiciário itinerante fomenta o acesso à justiça, incentiva os jurisdicionados a conhecerem, irem e confiarem no Judiciário, muitos dos quais habitantes das zonas rurais das mais remotas, que sequer sabem da existência do Judiciário e de seus direitos contra a ação ou a omissão de um particular ou do Poder Público.

Portanto, também todo juiz deve ir onde o povo está. Precisa alcançar uma parcela afastada dos grandes centros; precisa ir ao encontro dos moradores das favelas que conhecem a violência como árbitro e a resolução de conflitos pela lei do mais forte; precisa subir aos morros, lá onde a questão é resolvida pela arma de fogo e pelo facão; precisa entrar nos vilarejos que tem no desconhecimento, na passividade e no medo grande impedimento para alguém ir procurar seus direitos; precisa adentrar em áreas de extrema violência com mandados de prisão para tornar punível e cumprida a sentença; precisa chegar a todas as regiões, ser onipresente, porque isso constitui democracia, um dos pilares da nossa Constituição Cidadã.

 

* Vallisney de Souza Oliveira (VSO). Publicado no Jornal Correio Braziliense, Suplemento “Direito & Justiça”, 20.08.2007; na Revista do Tribunal Regional Federal, n. 11-12, ano 19, novembro de 2007, p. 87.

 

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