Artigos - Infanticídio (indígena) na Floresta

09/ 09 /2013

Infanticídio (indígena) na Floresta

Vallisney de Souza Oliveira*

 

Na edição 2021, de 15 de agosto de 2007, p. 104-106, sob o título “crimes na floresta”, a Revista Veja relata casos acontecidos com os índios “Suruuarrás”, semi-isolados do Amazonas, como o da indiazinha Hakani, que, por ter apresentado desde o nascimento problemas de saúde (hipotireoidismo congênito) foi condenada à morte pela tribo. O fato não se consumou porque os pais da criança, em vez de a envenenarem, eles próprios tomaram o veneno letal (timbó). Outras tentativas de matá-la ocorreram por ordem da tribo ao irmão mais velho de Hakani, que a atacou com porretes e a enterrou viva. Desenterrada por causa de seu insistente choro, o avô da criança deu-lhe uma flechada entre o ombro e o peito, mas em seguida, ele próprio, se matou. Doente e rejeitada pela comunidade indígena, a menina somente sobreviveu por causa da intervenção de um casal de missionários que a retirou de lá para tratamento em São Paulo e posteriormente a adotou.

De acordo com o teor da mesma reportagem, o infanticídio ainda é cometido por pelo menos treze tribos indígenas brasileiras, como os “Camaiurás”, de Mato Grosso. Tem a finalidade de aumentar as chances de sobrevivência do grupo contra os perigos da mata.

Se por um lado essa prática se justifica em razão da realidade dos povos da floresta, por outro, o ato de “matar alguém” em qualquer sociedade não pode ser concebível, porque viola direitos humanos irrenunciáveis.

A Constituição Brasileira, que tem como o direito primordial a vida, proíbe a pena de morte. Do mesmo modo, o Estatuto do Índio (art. 57 da Lei n. 6.0001/1971) tolera a aplicação, pelos grupos tribais, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não tenham caráter cruel ou infamante, sendo vedada em qualquer caso a pena de morte.

O infanticídio para o Direito Brasileiro é crime. Segundo o art. 123 do Código Penal Brasileiro matar criança durante o parto ou logo após, com influência do estado puerperal (infanticídio), a pena é de detenção de dois a seis anos. O mesmo Código (art. 128) traz como exceções ao direito à vida, o aborto consentido, quando, por exemplo, não existe outro jeito de salvar a vida da mãe ou quando é decorrente de estupro. Da mesma maneira, o homicídio (art. 121 do Código Penal) é crime dos mais repulsivos, embora o motivo de relevante valor social possa ser considerado fator benéfico ao réu na aplicação da pena.

Tratando-se de tribos praticamente isoladas, como são provavelmente os “Suruuarrás”, mencionados na Reportagem, não pode haver aplicação da nossa lei penal para os atentados à vida. Os membros desses povos não possuem condições de saber que essa deletéria prática é contrária ao Direito Brasileiro. Em tais circunstâncias, aqueles índios provavelmente não possuem consciência de que se trata de delito tipificado no Código Penal Brasileiro, não sendo admissível, assim, aplicar sanções aos viventes daquelas comunidades isoladas, que não possuem a noção da ilicitude de seus atos.

Aliás, os índios isolados são inimputáveis. Mesmo se eventualmente em alguma hipótese fosse permitida a aplicação da legislação penal deveria ser considerada ainda a regra disposta no art. 56 do Estatuto do Índio, segundo a qual, na hipótese de condenação criminal de silvícola, a pena deverá ser atenuada e o Juiz também atenderá na sua aplicação ao grau de integração do índio.

Consoante o art. 10 da mesma Convenção da Organização Internacional do Trabalho – OIT, aprovada no Brasil por meio do Decreto n. 5.051, de 19 de abril de 2004, quando sanções penais são impostas a membros de alguns povos, devem ser levadas em conta suas características econômicas, sociais e culturais.

É até compreensível que alguns indígenas tenham como tradição a extinção de um de seus membros, deficiente ou doente, para poderem enfrentar as dificuldades naturais da floresta e os outros problemas ligados às suas condições sociais e geográficas adversas. Contudo, o infanticídio e quaisquer outros delitos de idêntica natureza contrariam o Direito Natural e Fundamental do ser humano, que é o direito à vida.

Também o art. 8º da mesma Convenção n. 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) estabelece o seguinte: na aplicação das leis nacionais aos povos interessados, há de se considerar os seus costumes ou seu direito consuetudinário, porque esses povos possuem o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional, nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos.

A vida é um direito fundamental protegido pela Constituição (caput do art. 5º) e o Direito Brasileiro Constitucional proíbe a pena de morte.

A vida é tudo para o ser, é a raiz de todos os direitos, daí a necessidade de o Estado, por meio dos órgãos próprios, intervir e tentar minimizar as dificuldades sociais e naturais que causam o infanticídio, como, por exemplo, com a oferta de tratamento de doenças aos índios para reparação de defeitos congênitos de crianças do grupo.

O art. 5º da Convenção supramencionada determina aos Estados a proteção dos valores e práticas sociais, culturais religiosos e espirituais próprios dos povos e a devida consideração com a natureza dos problemas que lhes são apresentados. Por esse mesmo dispositivo os Estados devem respeito aos valores desses povos e devem adotar, com a participação e cooperação dos povos interessados, medidas destinadas a aliviar as dificuldades que as comunidades experimentam ao enfrentarem condições de vida.

Ora, se os indígenas não possuem recursos para tratar da saúde, para enfrentar e prevenir os desafios da selva, além de outras circunstâncias inerentes ao seu modus vivendi, cabe ao Estado ampará-los e não, pela omissão, condená-los ao abandono.

A conduta deliberada em tirar a vida de recém-nascidos e infantes, não importando os motivos, contraria os direitos humanos, fundamentais, universais, razão pela qual precisa haver uma maior ação do Governo Brasileiro para tentar minimizar a barbárie e os atos deletérios a crianças, mesmo se sabendo que tais condutas fazem parte da cultura e da tradição desses povos.

Exclui-se a existência de delito e a consequente punição pela Justiça Brasileira a quem não possui condições de entender o caráter criminoso da conduta atentatória à vida. Mas isso não impede a presença mais efetiva dos órgãos nacionais nessas regiões isoladas, mediante políticas públicas destinadas a debelar a abominável prática de pena de morte por abandono, envenenamento ou violência contra os recém-nascidos.

Enfim, conquanto à luz do nosso Direito não haja propriamente “crimes” na floresta, como está dito no título da Reportagem da Veja, é de se considerar tal conduta contrária aos valores humanitários, pois a vida é o bem maior do ser humano, é o bem por excelência, mesmo porque sem vida, neste plano terreno, nada mais tem importância, nada.

 

* Publicado no Jornal Correio Braziliense, Suplemento “Direito & Justiça”, 15.10.2007, e na Revista Jurídica Consulex, n. 262, dezembro de 2007, p. 16. (VSO)

 

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