Artigos - Delegação de Atos no Poder Judiciário Democrático

27/ 09 /2013

Delegação de Atos no Poder Judiciário Democrático

Afirma-se que os juízes não foram escolhidos pelo povo, por isso não podem ter a mesma legitimidade dos integrantes dos demais Poderes, estes escolhidos pelo voto popular. Seja escolhido por concurso público ou por outro modo previsto na Constituição, o certo é que o juiz exerce um papel fundamental no Estado, sendo sua missão julgar conflitos e realizar direitos.

Como agente público, além de decidir questões relacionadas a pessoas e bens, o juiz pratica no processo, civil, penal, militar, eleitoral ou trabalhista, atos inerentes à atividade jurisdicional, isto é, atos necessários para processar e julgar a causa sob sua apreciação.

Entre esses provimentos judiciais sempre foi tormentoso o trabalho da doutrina processual na diferença entre dois atos típicos do magistrado: os despachos e as decisões interlocutórias.

Para uma corrente, tradicional e minoritária, por meio de despacho o juiz decide, como se consagrou o denominado despacho saneador, em que o juiz decide saneando o processo.

Porém, a técnica jurídica abominou a tradição forense do direito português, herdada por nós, de que por despacho o juiz profere decisão interlocutória. O próprio Código de Processo Civil definiu que os despachos, por serem de mero expediente, não têm como objetivo a decisão, mas a mera ordenação e a sequência dos provimentos judiciais.

Nesses termos, se o ato processual tiver potencialidade para causar gravame a qualquer uma das partes, não se trata mais de despacho, porém de decisão. Ou seja: não haverá mero ato ordinatório, mas ato essencialmente decisório.

Em suma, a técnica judicial exige a precisa característica do despacho: não decidindo coisa alguma, apenas dá movimento ao processo.

A questão doutrinária fica mais atual com a possibilidade de os atos meramente ordinatórios deixarem de depender de despacho do juiz e de poderem ser praticados pelo servidor do Judiciário. Desse modo, os provimentos de mera evolução e de ordenação podem ser proferidos tanto pelo juiz quanto pelo funcionário da respectiva Vara.

Em 1994, a Lei n. 8.952 introduziu o § 4º ao art. 162 do CPC, que tem a seguinte dicção: “Os atos meramente ordinatórios, como a juntada e a vista obrigatória, independem de despacho, devendo ser praticados de ofício pelo servidor e revistos pelo juiz quando necessário”.

Dez anos depois, idêntico dispositivo foi inserido na Constituição da República, com a Emenda n. 45/2004, e está assim redigido: “Os servidores receberão delegação para a prática de atos de administração e atos de mero expediente sem caráter decisório” (art. 93, XIV).

A delegação de atos típicos do juiz para os auxiliares da Justiça não abrange as decisões, como se extrai do texto constitucional, porque estas permanecem vinculadas a atos do juiz, exclusivamente.

A atuação mais extensa e intensa de assessores e de auxiliares na prática de atos de administração judiciária e de ordenamento processual não impede o controle judicial pelo próprio magistrado, que fiscaliza, de ofício ou a requerimento, se os funcionários fazem o trabalho judicial de acordo com os devidos parâmetros processuais.

Os atos meramente ordinatórios, normalmente praticados por meio de despachos judiciais, não possuem a potencialidade de causar prejuízo a nenhuma das partes, razão por que podem ser delegados sem qualquer risco de irreversibilidade ou de reparação de danos, a não ser em casos excepcionais.

Situação diferente seria se fossem delegadas decisões incidentais, sentenças e acórdãos, embora no meio forense todos saibam que muitas minutas ou projetos de atos decisórios são feitos por assessores geralmente bem qualificados, sob o controle, orientação e a responsabilidade do juiz de primeiro grau, do desembargador ou do Ministro dos tribunais.

Ao saírem da normal feitura e assinatura do juiz, ou melhor, ao se descentralizarem, os singelos atos de expediente facilitam a celeridade do processo, por poderem ser praticados e assinados pelo servidor judiciário, sem necessidade de passar previamente pelo crivo judicial.

O magistrado que pretender elaborar, sem auxílio algum, todas as suas decisões e todas as suas sentenças cumulativamente com a prática de atos rotineiros (vista à parte, remessa dos autos à contadoria e ordem de intimação etc.) tem tudo para atrasar o andamento forense normal e causar reclamação geral dos jurisdicionados de que os processos não andam, dado o excessivo labor judicial.

Alguns apontam o risco de se deixar nas mãos da Secretaria judiciária toda e qualquer atividade de andamento do processo. Esse eventual perigo pode ser evitado ou minimizado com a delegação de funções para servidores qualificados, pelo acompanhamento ou controle a posteriori permanente e pela fiscalização criteriosa do juiz e de corregedorias na atuação da atividade dos servidores.

Dir-se-ia que o dispositivo constitucional que confere a possibilidade de delegação de despachos de mero expediente atende ao princípio da celeridade processual em detrimento do princípio da segurança jurídica o que seria sempre arriscado.

Contudo, não há prejuízo à segurança jurídica, pois mediatamente o magistrado continuará coordenando a atividade cartorária: receberá reclamações das partes; fará inspeções; chamará para si o poder de impulsionar o processo ao perceber algum acontecimento irregular, uma vez que quem delega pode avocar um ato tipicamente seu; arrolará atos passíveis ou não de delegação, mediante portaria ou recomendação aos auxiliares do juízo.

Atualmente os serviços judiciários recebem da informática imprescindível auxílio. São os processos virtuais, sem papel ou com o mínimo de papel. Nesse ambiente de trabalho judicial o controle do juiz se torna ainda mais fácil, porque do seu computador pode averiguar todas as fases procedimentais e saber quais atos praticados, quem os praticou e qual o seu conteúdo.

Afirmar-se-ia que a pulverização da prática dos atos ordinatórios acarreta a perda de controle do juiz no trabalho dos funcionários. De fato, exceto quando consultado previamente ou quando já editadas portarias ou modelos do que deve ou do que não deve ser feito pelo servidor, a priori, o juiz não tem como controlar o conjunto de atos praticado pelo funcionário até a sua publicidade e automático conhecimento pelas partes e advogados. Porém, mesmo não tendo em todos os casos o controle prévio da elaboração do ato, a própria Lei previu um mecanismo da revisão judicial previsto no art. 162, 4º, do CPC, ou seja, revisão a pedido do interessado ou revisão oficial do juiz diretor do processo.

A democracia na prática de atos de mero expediente retira do juiz a atividade burocrático-cartorária e de agente direto do impulso processual, não menos importante, que pode ser delegada à Secretaria, a fim de aperfeiçoar o serviço forense, sem afastá-lo do controle e da fiscalização sobre esses mesmos atos.

Uma das vantagens da delegação é a possibilidade de o magistrado poder preocupar-se com audiências, receber advogados, reunir-se com servidores, tratar com representantes de outras instituições os problemas organizacionais ou judiciais e, ainda, ter tempo para resolver casos complexos, que geralmente ficam para trás pela preferência natural dada aos assuntos mais fáceis, que já possuem precedentes doutrinários e jurisprudenciais.

A delegação também contribui para a rapidez no procedimento judicial, porque força a Secretaria Judiciária a funcionar com mais eficiência e presteza, e concede ao magistrado mais tempo para praticar atos que necessitam de sua intervenção mais imediata (audiências de instrução e julgamento, liminares e antecipatórias de tutela, sentenças complexas).

Com a delegação dos atos ordinatórios ganha o juiz, que, com mais tempo, pode dar mais atenção a um maior número de sentenças e melhorar a Administração da Vara ou do seu Gabinete. Ganha o servidor cartorário, que terá mais liberdade e mais responsabilidade nos seus expedientes sem precisar da intervenção do juiz. Ganha o jurisdicionado, que vivenciará uma maior dinâmica na secretaria judiciária, um melhor acesso à justiça pela facilidade da comunicação com os servidores judiciais e, ainda, poderá obter uma sentença, em tese, mais rápida e bem mais cuidadosa por parte do seu prolator.

Trata-se de uma necessidade em face do gasto excessivo do tempo na prática dos atos judiciais e a contemporaneidade exige do magistrado o compartilhamento e a divisão de tarefas, tudo em prol do aprimoramento da atividade judicial.

É preciso reiterar, por fim, ser permitida a delegação de atos procedimentais, nunca de poderes, ficando garantida, assim, a prestação jurisdicional. São delegadas atividades cartorárias, formais e processuais, jamais as decisões de mérito ou de questões a ele relacionadas.

A desconcentração na prática de atos meramente ordinatórios oferece ao Judiciário a oportunidade de ser menos moroso e mais dinâmico, menos arcaico e mais moderno, menos isolado e mais participativo, deixando de ser simples aplicador da lei para transformar-se em agente ativo de produção e de declaração de direitos. A delegação incentiva todos os servidores judiciais a redobrarem atenção, assumirem mais responsabilidades e enfrentarem mais desafios nas atividades forenses, e oferta mais tempo e participação do juiz na missão judicial. Aos jurisdicionados também a democratização é profícua, porque verão um Judiciário muito mais dinâmico e eficiente.

 

Vallisney de Souza Oliveira (VSO). Publicado na Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Brasília, n. 5, ano 20, maio de 2008, p. 57-58.

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