Artigos - Acesso à Justiça e Defensoria Pública

13/ 10 /2014

Acesso à Justiça e Defensoria Pública

O princípio do acesso à justiça sempre deu margem a discussões, comentários e exegeses diversas, objeto inclusive de violações por leis que retiram do juiz o poder de prestar a imediata jurisdição, conquanto conduza ao mandamento de que o Poder Judiciário não pode abrir mão, no âmbito da jurisdição única como é a brasileira, de apreciar qualquer controvérsia, salvo as exceções constitucionais, como a que envolve a justiça desportiva, na qual o jurisdicionado deve primeiro passar pelo procedimento perante os tribunais desportivos.

O preceito do acesso à justiça, surgido na Constituição de 1946 e reiterado na Constituição de 1967 (e Emenda de 1969), pelo qual se vedava a exclusão legal de qualquer apreciação do Poder Judiciário sobre lesão a direito individual, está inserto no artigo 5º, XXXV da Constituição em vigor, consistente no direito do cidadão de invocar a prestação jurisdicional contra qualquer lesão ou ameaça a direito.

O acesso à Justiça impõe o exame do conflito inevitavelmente pelo Poder Judiciário, que deve exercer plenamente a jurisdição e impede legislação criadora de óbices ao livre ingresso de ação.

Por força de Emenda (1977) à Constituição anterior chegou-se a estabelecer a necessidade de prévio requerimento administrativo como pressuposto para demandas judiciais contra o Poder Público e somente após o procedimento perante a Administração Pública a questão podia ser levada ao Judiciário. Cuidava-se do contencioso administrativo, condição para a demanda judicial da precedente análise do órgão administrativo, regra que não foi posta em prática nem foi repetida na Constituição de 1988.

Sob o aspecto da celeridade e da economia, a fim de se evitar excesso de litigiosidade, não seria um despautério o mecanismo segundo o qual a Justiça deva agir subsidiariamente, evitando substituir o administrador e as próprias partes. No entanto, o sistema atual não cria óbices para que as pessoas ingressem logo no Judiciário, amparadas que estão no princípio do acesso à justiça.

Segundo majoritária jurisprudência, com entendimento já pacificado no Superior Tribunal de Justiça, a postulação em juízo independe de pedido ou esgotamento da via administrativa, especialmente em ação acidentária ou previdenciária. No entanto, a questão ainda está pendente de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal, que aceitou a repercussão geral “acerca da existência de prévia postulação perante a administração para defesa de direito ligado à concessão ou revisão de benefício previdenciário como condição para busca de tutela jurisdicional de idêntico direito” (RE 631240-MG, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Data do julgamento 09-12-10, DJ 15-04-2011).

Na prática forense difusa de primeiro grau, em cada situação o juiz avalia se a questão é daquelas cujos interesses inevitavelmente são contrariados e procura ver se, mesmo sem pedido administrativo, subsiste o interesse de agir do autor.

Acerca do acesso à Justiça tornou-se bastante conhecida uma pesquisa de amplitude mundial realizada nos anos setenta do século passado (sintetizada e traduzida na obra Acesso à Justiça, de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, Porto Alegre: Fabris, 1988). Inserido no denominado Projeto de Florença, tal estudo se concentrou na face social da tutela judiciária; voltou-se para o consumidor dos serviços judiciais, à procura do motivo pelo qual o cidadão vai ou deixa de ir à Justiça Oficial, quais os problemas relacionados com a entrada e a saída das demandas e quais as dificuldades para se distribuir justiça ampla e universal.

Nesse extenso trabalho são apontados óbices comuns e direcionamentos denominados ondas ligadas ao acesso à justiça. Um deles é a falta de assistência judiciária e de recursos materiais de muitas pessoas (pobres): despesas com advogados, custas processuais e outras dificuldades para as pessoas humildes e comuns deixarem de procurar a Justiça e preferirem resolver seus conflitos por outros meios.

O segundo grupo de causas e efeitos consistiu na barreira relacionada com a proteção a novos direitos, entre os quais coletivos e difusos. Por fim, foram expostos os óbices considerados pontuais e procedimentais, referentes a diversas situações desestimuladoras da plenitude do acesso à justiça, como os ritos demorados e a formalidade excessiva.

Os diagnósticos e soluções constantes desse Projeto continuam atuais, mesmo tendo sido feitos há algum tempo e se voltado para soluções de problemas da segunda metade do século passado.

É provável que outros desafios e outras ondas (soluções), não previstas naquele estudo, tenham surgido em determinado país ao longo de todos esses anos, em face das peculiaridades locais e das novas formas de impasses judiciais, impensáveis naquela época. Em particular no Brasil de agora, os problemas de acesso à Justiça são ainda grandes, como quantidade de recursos, alta lentidão dos ritos, custo insuportável, ineficiência do sistema de satisfação do julgado e excesso de litigiosidade, sobremodo da Administração Pública.

Um dos problemas indicados naquele trabalho coletivo consistiu na falta de assistência judiciária e na possibilidade de se ofertar um advogado particular, a expensas do Governo, para os necessitados. No Brasil a solução se deu com a previsão, conquanto paulatina, da criação das Defensorias Públicas, em todas as esferas governamentais, integradas geralmente por agentes públicos, bacharéis em Direito, concursados, estruturadas e voltadas para quem não possui condições financeiras de custear um processo.

A Defensoria se tornou instituição essencial à Justiça, segundo a Carta Democrática de 1988, e a ela cabe a orientação jurídica e a assistência judiciária aos hipossuficientes. Mas é fácil constatar que esse órgão passou por uma lenta e difícil evolução, não tendo ainda conseguido corresponder às necessidades da população, seja por falta de estrutura, seja por falta de efetivo funcionamento em alguns estados e muitas cidades. O acesso à Justiça, no caso, encontra óbice não somente em relação ao Judiciário, mas em momento anterior, pois as pessoas necessitadas tinham dificuldades, e ainda possuem em menor grau na atualidade, de acesso à própria Defensoria Pública. Em alguns lugares, era e é comum que pessoas fiquem horas e até dias nas intermináveis filas e sofram para obter as limitadas senhas de atendimento, na esperança de poder expor o seu problema a um defensor, que muitas vezes, apesar de todo o esforço, não consegue atender integral e satisfatoriamente aos anseios e aos interesses de tantos quantos se dirigem àquele órgão. Ou seja, o débito da assistência judiciária gratuita com uma imensidão de interesses e pretensões de que são credoras pessoas desprovidas de recursos no nosso Brasil múltiplo, desigual e carente de assistência jurídica e econômica. Aliás, considerando milhões de excluídos, seria necessário um verdadeiro exército não apenas de defensores, mas também de promotores, de magistrados e de outros agentes públicos para realizar idealmente a pacificação de conflitos estatal gratuita.

Hoje, porém, a Defensoria Pública está mais presente na comunidade. Cada dia aumenta o seu papel institucional, ocupa seu espaço e se qualifica como ancoradouro dos desamparados, rege-se por lei própria, dota-se de maior autonomia orçamentária, dá provimento a mais cargos, como é exemplo a defensoria pública federal, e garante prerrogativas processuais aos seus agentes. Ao prestar orientação jurídica e amparo em juízo ao necessitado colabora com o amplo acesso à justiça, seja pela informação de direito, seja pela ação ou defesa judicial, e com o aprimoramento da prestação jurisdicional e do estado democrático de direito.

Entre as conclusões da pesquisa (Projeto de Florença) sobre acesso à Justiça, capitaneada pelo saudoso jurista italiano Mauro Cappelletti, salientou-se a atenção do Estado com os pobres. Dentro desse contexto, a onda brasileira passou e passa inevitavelmente pela atuação da defensoria pública, que, apesar de altos e baixos na sua evolução, é base fundamental para o esclarecimento jurídico, para a defesa do cidadão em juízo e fora dela, e para a diminuição das desigualdades sociais e econômicas e de seus nefastos efeitos.

 

* Vallisney de Souza Oliveira – VSO. Publicado também: na Revista do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, n. 12/1, ano 23/24, dezembro/2011-Janeiro 2012; no Informativo Jurídico Consulex, n. 7/2012, de 13/02/2012 – Seção: Tribuna Jurídica. Ed. Consulex.

 

categoria: Artigos