Palestras - Palestra 6

25/ 05 /2015

Palestra 6

Ação Popular como Instrumento de Defesa da Moralidade Administrativa

Gostaria de cumprimentar os acadêmicos da minha querida Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas e das demais Faculdades de Direito deste Estado. Minha saudação também aos professores, magistrados, procuradores, advogados e demais profissionais do Direito. Senhoras e senhores. Cumpre-me falar de um instituto secular no direito dos povos, muito importante para a vida em comunidade especialmente quando visa a proteger a cidadania contra o mau uso do Poder.

É a ação popular, instrumento constitucional que, apesar de estar prevista em Lei criada em 1965, continua atual e cada vez mais se fortalecendo para, juntamente com outros mecanismos judiciais e administrativos, controlar e punir os abusos estatais e a falta de seriedade com a coisa pública.

O Brasil, como os povos latinos de um modo geral, herdou dos Romanos grande parte da sua formação jurídica. Aliás, o povo romano, alguém já disse, deixou de dominar o mundo com as armas e passou a dominar o mundo com o Direito.

Na época da República, a actio popularis romana podia ser manejada contra todos aqueles que exerciam cargos ou funções públicas, com objetivo de defender o patrimônio dos particulares e das entidades públicas, contra a ilegalidade e a imoralidade.

A ação popular em Roma era muito utilizada, por exemplo, contra os violadores de sepulturas; contra quem de sua casa jogasse coisas nas ruas; contra quem levasse para logradouros públicos animais ferozes; contra a prisão do cidadão romano; contra a prisão de escravos e também contra os antigos proprietários que, em conluio, declaravam terem os escravos libertos nascidos livres.

O Direito brasileiro já experimentou uma espécie sui generis de ação popular, disposta no artigo 157 da Constituição de 1824, contra os juízes, nos casos de suborno, peita, peculato e concussão, cuja legitimidade seria a do próprio queixoso ou de qualquer do povo. Tratava-se de uma espécie de ação popular penal e foi, decerto, a primeira espécie de ação popular brasileira e a primeira em defesa da moralidade pública.

A Constituição de 1934 também inovou com a ação popular para qualquer cidadão pudesse “pedir a declaração de nulidade ou anulação dos atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados ou dos municípios”.

Não se cogitava, naquela época, expressamente do assunto moralidade, apenas se buscava o combate à lesividade ao patrimônio dos entes públicos. Todavia, a Constituição de 1934 foi inovadora ao utilizar a palavra cidadão, termo bem característico da República, ao contrário do Império, no qual era corrente o tratamento de súdito para as pessoas do povo. Tinha essa ação força de anulatória, ou seja, de desconstituição do ato impugnado, apesar de, infelizmente, não ter sido regulamentada, nem posta em prática, principalmente por sua breve vigência.

Não tendo sido prevista na Carta Ditatorial de 1937, a ação popular retornou somente com os ventos democráticos refletidos na Constituição de 1946, no capítulo dos Direitos e Garantias Individuais, nestes termos: “Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados, dos Municípios, das Entidades autárquicas e das sociedades de economia mista”.

O Documento Constitucional de 1946 ampliou a noção de patrimônio público, incluindo o das entidades autárquicas e das sociedades de economia mista.

Sob a égide dessa Carta da República, do início do governo militar, nasceu a Lei 4.717, de 20 de junho de 1965, para regulamentar a ação popular constitucional. A razão de sua edição naquele delicado período deu-se pelo fato de o governo militar ter usado como bandeira inicial e como justificativa de sua atuação também o combate à corrupção.

Seguindo os mesmos passos, a Constituição de 1967 consagrou a actio populis, no seu artigo 150, quando disse no parágrafo 31, que “qualquer cidadão será parte legítima para propor ação popular que vise anular os atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas”.

A Emenda Constitucional número 01, de 1969, apenas repetiu os dizeres da Constituição anterior, conforme seu artigo 153, § 31, constante do capítulo sobre os direitos e garantias individuais, inserto no título da declaração de direitos.

Até a Constituinte de 1987 não se cogitava do uso de instrumento de combate à moralidade administrativa, tendo a Constituição de 1988 inovado nesse particular.

De fato, na Constituição atual o objeto da ação popular tornou-se mais amplo, porque se acrescentou o pressuposto da lesividade ao meio ambiente e o da lesividade à moral administrativa, independentemente da lesão ao patrimônio público.

Segundo o artigo 5º, inciso LXXIII da Constituição de 1988, todo cidadão possui legitimidade para ingressar com ação popular visando à anulação de “ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”.

O controle do Judiciário sobre o executivo e sobre as próprias ações administrativas do Judiciário pode ser exercido com o uso de processos judiciais garantidores de direitos individuais e coletivos, dentre os quais o mandado de segurança, o habeas corpus, o habeas data, o mandado de injunção, a ação civil pública e a ação popular, conforme a Constituição em vigor.

A ação popular é instrumento constitucional destinado à proteção do patrimônio público material e imaterial, da moralidade administrativa e do meio ambiente. Não tem hoje somente o perfil tradicional de ser mecanismo de participação do povo na coisa pública, como instrumento da democracia, da participação popular, mas, também, de legítimo instrumento de direito subjetivo civil contra qualquer lesão ao bem pertencente a todos, à lisura nos negócios públicos e ao bem difuso ambiental.

A ação popular teve lugar nas Constituições de outros povos, como é o caso da ação popular alemã por inconstitucionalidade de lei, prevista na Constituição da Baviera; a ação popular de Portugal recebeu um grande impulso na legislação ordinária, com o advento da Lei 83, de 23 de agosto de 1995; também podem ser mencionadas as ações populares das Constituições da Colômbia, Equador, El Salvador, Venezuela, Panamá, dentre outros países latino-americanos.

A popular constitucional é a única ação popular de natureza cível no Brasil, embora não seja o único meio judicial para defesa da moralidade administrativa.

A legislação ordinária já acolheu, diga-se de passagem, outras formas de ações populares, como a ação popular referente à perda, aquisição e reaquisição de nacionalidade e perda de direitos políticos, da Lei 818, de 18 de setembro de 1949. Nesse ponto, está com razão José Afonso da Silva, para quem a Lei 818 foi revogada pelo Decreto-Lei n. 941, de 1969, que não reproduziu a regra da ação popular para anulação de ato de naturalização.

Quanto à moralidade, objeto de defesa por meio da ação popular, hão de ser feitas algumas diferenças entre os termos moralidade pública e moralidade administrativa.

A moralidade pública requer que o senso ético frequente os atos dos agentes públicos, inclusive os legislativos e os judiciários. A moralidade administrativa contém significado mais específico, sendo princípio expresso no artigo 37 da Constituição Federal e voltada para o administrador da res publica.

Como princípio, a moralidade pública é mais abrangente, visto que, além de incluir a moralidade administrativa, impõe que os atos processuais e judiciais e os atos no processo legislativo sejam pautados pela boa-fé.

A imoralidade dos atos judiciais pode ser impugnada pelos recursos próprios e ações autônomas, além de atuação de órgãos de controle; a imoralidade nos atos tipicamente legislativos também possui um controle na formação da lei e depois de editada por meio da ação direta de inconstitucionalidade, na qual se insere a supremacia dos princípios constitucionais.

A moralidade administrativa compõe um conjunto de normas éticas a serem levadas em consideração pelo administrador na prática do ato e das decisões administrativas e em todas as condutas e práticas administrativas.

O princípio da moralidade administrativa é mais perceptível quando há violações por parte do Executivo, do legislativo e do Judiciário. Consequência do princípio da moralidade administrativa por sua vez, é o da probidade, mais específico e expresso no § 4º do artigo 37 da Constituição Federal.

A Constituição de 1988 instituiu os princípios da Administração Pública, entre eles o da moralidade. Esse princípio ganhou força com o disposto na regra sobre a ação popular que visa a proteger as violações a essa moralidade.

O princípio da moralidade administrativa, explícito na Constituição, é o conjunto de ideais e valores relacionados com a honestidade, a licitude, a probidade, a boa-fé e a lealdade na prática dos atos do administrador público, seja ele de qualquer esfera do Poder.

O princípio da moralidade administrativa serve ao estado democrático de direito, no qual vigora hierarquia entre a Constituição, as leis e os atos administrativos dos Poderes Públicos.

A ação popular como forma de preservação da moralidade administrativa surgiu com a Carta de 1988. Mas o Brasil conheceu também para a defesa da moralidade administrativa, outra espécie de ação popular, encontrada na Lei 3.052, de 21 de dezembro de 1958, contra o enriquecimento ilícito, revogada pela Lei. 8.429, de 1992, que trata da improbidade administrativa.

No campo penal, tão difundida é a ação popular contra os crimes de responsabilidade do Presidente da República, na forma da Lei 1.079, de 1950.

Em caso de falta de ética na Administração Pública o legislador previu vários meios de fiscalização judicial. O mais tradicional em nosso direito é o da ação popular, conhecida nos tempos de Roma e implantada no Direito brasileiro.

A ação popular constitucional brasileira – nas palavras do ilustre José Afonso da Silva – “é um instrumento de democracia direta, pelo qual o cidadão exerce, por si e diretamente, a função fiscalizadora dos negócios públicos, no que tange à moralidade, o que normalmente é feito por representantes políticos”.

O surgimento da ação popular demonstra o verdadeiro exercício do governo para salvaguarda dos interesses sociais e do bem comum, daí ter afirmado José Frederico Marques ser a ação popular “uma projeção, no campo da moralidade, desse direito ao processo”.

O legislador e a Administração Pública devem pautar-se pelo princípio da moralidade, sob pena de violação de preceito fundamental. Atos administrativos violadores desse princípio constitucional podem sofrer o controle pelo juízo competente. Provocado, mediante ação própria, ao Judiciário incumbe aferir se aquele ato fere o princípio da moralidade.

Atos administrativos imorais, amparados em leis feitas com o propósito de proteger ilegitimamente pessoas certas, podem, igualmente, sofrer o controle pelo juízo competente. As leis imorais são passíveis de sofrer controle constitucional, pois o requisito “imoralidade” para os fins de ação popular subsiste por si só.

Atos transgressores do artigo 37 da Constituição, além de ilegais, revestem-se de absoluta inconstitucionalidade, se posteriores à Constituição. Se anteriores devem ser reputados como revogados ou não recepcionados, porque não existe no Brasil a ação direta de revogação constitucional, mas a direta de inconstitucionalidade para atos posteriores à Constituição. Segundo entendimento do próprio STF, se os atos normativos foram criados antes da Constituição, são considerados pura e simplesmente revogados, podendo ser reconhecidos por qualquer juiz ou tribunal.

Destarte, força é reconhecer que os atos administrativos corrosivos ao patrimônio público, os que não atendem aos fins legítimos e aqueles que ferem preceito constitucional, quando são impugnados, via Judiciário, sujeitam-se à declaração de invalidade, com a consequente condenação dos responsáveis, se for o caso.

Assim como ocorre com a lesividade ao patrimônio, a violação à ética administrativa, por meio de atos administrativos imorais, se sujeita à propositura de ação popular, independentemente da ilegalidade, porque todos têm direito a um governo sério e honesto.

A ação popular é instrumento processual constitucional posto à disposição do cidadão para a defesa de nobilíssimos bens da Nação, entre os quais a moralidade administrativa. Seu uso poderá ser elemento necessário para luta contra a corrupção, o peculato e outros desvios de finalidade administrativa ou abuso de poder.

A moralidade administrativa, recebendo dignidade constitucional está sujeita a largo controle o que é bom para o cidadão, cuja participação na res publica é cada vez mais exigida e necessária.

Além da ação popular, para coibir a imoralidade dos atos da Administração, a própria Constituição previu dois instrumentos judiciários: a ação civil pública, disposta no artigo 129 da Constituição, e a ação de improbidade administrativa, prevista no artigo 37, parágrafo 4º, da mesma Constituição.

Quanto à ação de improbidade administrativa, a Lei 8.429, de 02 de junho de 1992, constitui marco legislativo verdadeiramente moralizante, ao regulamentar o art. 37, parágrafo 4º. Esse Estatuto regulou os atos e sanções contra o enriquecimento ilícito e atos de improbidade administrativa, no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional, dizendo em seu art. 11, constituir ato de improbidade administrativa, atentatório aos princípios da Administração Pública, qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições.

O artigo 37, parágrafo 4º da Carta Democrática de 1988 é mais uma demonstração da importância que o legislador deu à lisura na atividade pública. E a Lei de Improbidade abriu uma grande trincheira de luta contra os arranhões e as ameaças ao princípio da moralidade.

Além disso, ao lado e sem prejuízo da ação popular, a ação civil pública também figura entre os instrumentos utilizados em defesa desse mesmo princípio.

A ação popular e a ação civil pública visam à proteção do patrimônio público. Mas um olhar atento sobre esses dois processos, a priori, nos aponta em ambos idênticos objetos, total ou parcialmente.

A ação civil pública, de certa forma, abrange o objeto da ação popular, se sob a ótica da sua propositura pelo Ministério Público. Atualmente se deve reconhecer o cabimento pelo Ministério Público da ação civil pública visando a proteger todos os bens resguardados pela ação popular.

Vale dizer, o Ministério Público é verdadeiramente autor popular, embora a rigor não possa propor ação com esse nome, mas com o de ação civil pública, de procedimento diverso.

Em face do art. 129 da Constituição Federal e das Leis Orgânicas do Ministério Público dos Estados e da União, que são a Lei 8.625, de 1993, e a Lei Complementar 75, de 1993, é indubitável a legitimidade ativa do Órgão Ministerial para a propositura da ação popular sob a roupagem da ação civil pública.

Esses diplomas legislativos autorizam o uso da ação civil pública pelo Parquet contra a lesividade ao patrimônio público e à moralidade administrativa.

Assim, no regime atual, todos os bens protegidos pela ação popular podem ser perseguidos pela ação civil pública, desde que proposta pelo Ministério Público.

Felizmente, com essas três vias processuais à disposição da sociedade e ainda a participação intensa e cuidadosa do Ministério Público com o zelo pela coisa do povo se caminha para o crescimento do controle judicial da moralidade administrativa e para a idealização da ética na atividade pública.

Mas não custa nada lembrar que o exercício efetivo da cidadania inclui a ação popular, especialmente nos tempos atuais da maior participação e cobrança da sociedade pelo respeito às instituições democráticas visando à retirada das mazelas e os desmandos de alguns dirigentes ou administradores, entre os quais a improbidade, verdadeira chaga arraigada na cultura e na história brasileira.

O uso da ação popular, desde o nascimento da legislação pertinente, nunca foi tão intenso. Entretanto, sempre foi crescente a cada ano, resultado da informação, da educação, da consciência coletiva e da participação política do cidadão com o passar dos anos, sem embargo de ainda não ser grande o número de ações populares comparado com os danos, sobretudo os divulgados pela Imprensa, ao patrimônio, à moralidade e ao meio ambiente, como é sabido de todos.

É possível que no futuro se possa ter um aumento do índice da ação popular o que seria importante para o controle democrático da Administração Pública.

Ainda existe o receio dos legitimados populares serem perseguidos politicamente, de virem a sofrer penalidades administrativas ou de ficarem expostos indevidamente à perseguição dos governantes ou pessoas influentes, contra quem foi proposta a ação popular. Contudo, comparando-se com tempos de outrora, a actio populis hoje é mais utilizada, num movimento crescente.

Em estudo feito nos primeiros anos após a Constituição sobre a ação popular na Justiça Paulista, pode-se referir às conclusões de José Luiz Gavião de Almeida, no artigo denominado “A ação popular e a Constituição de 1988”, publicado na Revista dos Tribunais número 729, nos termos seguintes: “Na cidade de São Paulo, enquanto até 1988 só excepcionalmente passou-se das 10 ações intentadas ao ano, e isto aconteceu apenas em épocas eleitorais, notou-se, após essa data, uma consolidada tendência de aumento. Assim, em 1990 foram 28 ações aforadas; em 1991 chegou-se até 29 ações; em 1992 subiu o número para 35 ações; e em 1993, aconteceram mais de 40 demandas dessa natureza”.

Nos anos posteriores, em especial neste novo milênio, decerto o número de ações populares é muito maior em São Paulo e em todo o Brasil, como se pode facilmente perceber dos dados de jurisprudência colhidos na internet. Considero esses dados importantes, porque, sob o ângulo da democracia, a fiscalização da coisa pública não pode ficar concentrada num só órgão, no caso o Ministério Público.

É incessante e crescente a peleja contra a ilegalidade, a imoralidade e a corrupção no Brasil e nessa batalha não se pode deixar de salientar a consciência da cidadania pela ação popular e a intensificação da atuação do Ministério Público, com a ação de improbidade administrativa.

E a tradicional e histórica ação popular continua a figurar como instrumento processual à disposição do Direito Brasileiro para proteger a coisa pública. Quanto mais aumenta o seu uso contra os abusos administrativos, mais ganha a democracia brasileira.

 

 

Vallisney de Souza Oliveira. Palestra proferida no Seminário promovido pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas – UFAM e pelos Formandos do primeiro semestre de 2002. Manaus, 10.2001.

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