Palestras - Palestra 7

03/ 06 /2015

Palestra 7

Audiência e Julgamento

Senhor Coordenador do Curso de Direito da Universidade Nilton Lins, ilustre Prof. José das Graças Barros de Carvalho, em homenagem à sua pessoa faço também minha saudação a esta seleta platéia de estudantes e de profissionais do Direito.

É com muita satisfação que me proponho a expor alguns aspectos do princípio da oralidade na audiência e alguns atos que nela são praticados, em especial o julgamento.

As audiências civis, especialmente a audiência de conciliação, instrução e julgamento, tradicionalmente foram dispostas em lei, desde as ordenações lusitanas, das quais originaram nosso direito processual vigente.

Existe um elo comum entre a audiência e o princípio da oralidade. Toda audiência exige a participação ativa e direta dos interessados, inclusive do juiz, ao passo que o princípio da oralidade se realiza com audiência para os fins do direito e da jurisdição.

A oralidade é necessária em toda audiência, que se veicula essencialmente pela palavra, mesmo que acompanhada de método idôneo de documentação. E a palavra tem o significado de fala, de discurso, da oralidade para os destinatários. Na audiência se realiza o direito e a justiça pela palavra.

A audiência, ato legal em que os sujeitos do processo se reúnem para alcançar determinado fim útil à justiça, como a busca da verdade e a conciliação, predomina a palavra, a interlocução e nela ocorre uma grande oportunidade para o processo ser concluído e o julgamento definitivo ser realizado.

As audiências possuem função relevante no Direito Processual. Porém, sendo importantíssimas em outras épocas, aos poucos foram sendo substituídas ou atenuadas pelo uso dos atos escritos, na proporção da assimilação e da disseminação do conhecimento e da leitura.

No período clássico romano, e também no direito grego clássico, o cidadão apresentava seu caso ao magistrado, fazia-se o debate e, por fim, o julgador decidia prontamente em viva voz. Na antiga Roma, a publicidade das audiências e a exposição oral eram consideradas formalidades de ordem pública.

Os povos germanos julgavam, oralmente, reunidos. Os julgadores eram pessoas livres, escolhidos pela própria comunidade, que decidiam sobre o destino dos criminosos em pública audiência.

A audiência diminuiu seu uso no direito medieval canônico, cujos juízes eram clérigos, letrados e cultos, e o processo era escrito, formal e sigiloso. Quando ocorria uma audiência esta devia ser secreta e inquisitória.

Contudo, não se exterminou a oralidade da prática judiciária, tanto que no sistema jurídico do common law os jurados populares eram, em grande parte, analfabetos, que não se preocupavam com a prova documental ou com escritos dos depoimentos, valendo mais a palavra e o julgamento em reunião de pessoas.

A experiência histórica mostrou que não se pode viabilizar um processo totalmente oral, muito menos um processo integralmente escrito.

A oralidade pura foi adotada no Código de Processo Civil Português de 1932, mantida nos Códigos Processuais de 1939 e 1961, e persistiu até a reforma processual em Portugal de 1995. Foi uma experiência única e peculiar de que se tem conhecimento onde tudo se resolvia numa audiência sem que se fizesse a documentação suficiente do ocorrido.

No Brasil, o CPC de 1973 adotou o sistema oral mitigado pela escrita. Previu uma audiência única de conciliação, instrução e julgamento.

Posteriormente, a Lei dos Juizados Especiais, de 1995, adotou expressamente o princípio da oralidade, com as audiências. De fato, aproximando-se um pouco do sistema português da oralidade pura, mas não tão radical como o daquele país, a Lei dos Juizados prevê que “a prova oral não será reduzida a escrito, devendo a sentença referir, o essencial, os informes trazidos nos depoimentos”, embora possa ser documentada em fita magnética ou equivalente.

A escritura e a oralidade se misturam na aplicabilidade nos sistemas processuais modernos. A oralidade, constituindo a própria essência da audiência, imprime um colorido de justiça e efetividade à jurisdição, especialmente pela possibilidade de apuração imediata dos fatos, a busca segura da verdade e o contato humano. Não se pode, entretanto, menosprezar o registro, que atende à ampla defesa e possibilita a segurança jurídica.

A audiência realiza exemplarmente o princípio da oralidade, mesmo que não o faça na sua pureza, porque mitigado pela escrita, em razão da necessidade de registros.

Devem-se misturar os elementos da escrita com a palavra. Para obediência ao princípio da oralidade a fala prevalece, porque mais propiciadora da verdade, da justiça e da realidade e por ser a forma mais viva de comunicação. A audiência cumpre essa função de modo plausível, mesmo sem descurar do mínimo de documentação, por meio de ata, termo ou outra forma documental, inclusive com o uso dos mecanismos eletrônicos.

O sistema oral seguro pressupõe uma forma de registros na audiência, entre os vários modos conhecidos e não vedados: no passado, pela escrita, manual ou datilográfica ou programa de computador; no presente, com registro magnético, ou sistema áudio-visual, taquigrafia e estenotipia ou outros meios modernos, com o auxílio, por exemplo, da internet.

Aliás, para melhor operacionalidade e segurança, é possível a gravação da audiência ou mesmo a substituição da escrita pela reprodução em fita magnética ou em cd, o que vale também para o processo criminal. Não se pode deixar de incluir também nesse rol a filmagem, o sistema áudio-visual, que é a mais aprimorada forma de registro, já que capta a voz e a imagem, ou seja, como uma audiência ocorre na sua realidade e integralidade.

Os atos praticados na audiência do procedimento sumário podem ser registrados por meio de taquigrafia, estenotipia ou outro método hábil de documentação, o que muito é facilitado com o desenvolvimento da informática e da internet, com a transcrição imediata ou posterior, dependendo da tecnologia e a critério do juiz.

É possível cogitar, agora ou num futuro próximo, a produção e a juntada do registro imediato do vídeo, cd-rom ou dvd, ou o registro imediato dos atos orais produzidos na audiência. Em face do avanço vertiginoso da tecnologia, seria dispensada ou diminuída bastante a função do digitador, como, por exemplo, com o aparelho de transcrição imediata de voz ou sistema equivalente ou mais moderno tudo dependendo do interesse e recursos dos juízes e tribunais, ganhando-se em qualidade, precisão e objetividade do conteúdo do ato.

O avanço tecnológico a serviço das praxes judiciárias traz qualidade e economia de tempo. É ainda capaz de registrar o desenrolar dos fatos ocorridos na audiência. Melhor seria que não houvesse a intermediação do juiz nas falas e consequente repetição para o papel dos depoimentos, assegurando-se naturalmente o poder de polícia do magistrado no controle de erros e excessos.

A evolução da técnica, a informática, a internet, os recursos sonoros e de gravação são avanços irrenunciáveis. Diante disso, o Judiciário e o processo não podem ficar parados no tempo, sob pena de tornarem a justiça em imenso hiato com a realidade e com o progresso, este, fenômeno necessário ao homem e às suas aspirações sociais, culturais e econômicas.

Numa audiência se procura a conciliação, a colheita de provas, a supressão de vícios processuais, o debate e o julgamento. Nela o magistrado pode propor uma transação entre os contendores ou fazer a coleta de uma prova oral. Também pode perguntar sobre a confirmação de depoimentos e supressão de dúvidas como a prova escrita ou técnica e argüições das partes e testemunhos. Numa audiência, quando há previsão legal, é cabível a fase dos debates em contraditório e, por fim, a sentença num único ato. A audiência propicia um mecanismo de obtenção da justiça, da verdade, da socialização e da humanização processual.

Numa audiência, pela palavra se produz a prova oral, muito importante para descoberta da verdade, observando-se rigorosamente o princípio do contraditório.

O juiz, antes de decidir, ouve ambas as versões e argumentos de todos os litigantes. Estaria longe da justiça e do regime democrático se apenas um falasse, se apenas se admitissem provas de um litigante, mostrando-se apenas um lado da questão.

A igualdade de tratamento, a serviço do princípio da ampla defesa e do contraditório, deve ser seguida nos atos orais do juiz, das partes e dos magistrados, pois audiatur altera pars.

Os interessados e seus representantes, as testemunhas e outros interessados ou chamados a depor fazem suas postulações, manifestam suas posições, prestam suas informações diante do juiz que por sua vez conduz o procedimento e pratica atos inerentes à jurisdição.

A audiência regularmente conduzida auxilia uma composição amigável entre os litigantes, facilita a colheita de prova, enseja seguros argumentos para os contendores, propicia qualidade na resolução de questões incidentais e, finalmente, viabiliza um adequado veredicto.

O trabalho do juiz, auxiliares e partes, para uma regular audiência pode ser cumprido mesmo antes do ato, desde as intimações de advogados e intervenientes, publicações do ato, organização e contato com as pessoas que irão depor.

Durante a audiência é preciso observar regras de conduta. No âmbito de seu poder de polícia o magistrado não pode deixar de manter a ordem e o decoro, ordenar a retirada de qualquer pessoa que se porte inconveniente e, até mesmo, requisitar a força policial. Cabe-lhe ainda exortar o agente do Ministério Público e o advogado a se conduzirem com educação e respeito mútuo, isto é, com elevação e urbanidade.

O magistrado também precisa de serenidade. É de todo reprovável a postura de juízes que vestindo a toga agem como se fossem Senhores absolutos da razão, acima do bem e do mal. Por outro lado, também é reprovável a postura extremamente passiva e omissiva do juiz, deixando a audiência virar uma sala de aula sem professor, repleta de adolescentes rebeldes ou crianças de jardim de infância.

Quanto aos debates na audiência, o ideal é a argumentação fática e jurídica, com os pontos favoráveis ao seu cliente. Dependendo da situação, é até tolerável o apelo emocional, o pedido de comiseração. Mas não se deve esquecer que numa audiência, civil, por exemplo, de instrução e julgamento quem irá valorar ao final os argumentos é o juiz singular, técnico e não leigo na ciência jurídica. A análise é feita por um magistrado adstrito à razão e às provas produzidas, que tem a liberdade para perceber e refutar afirmações inconsistentes das partes, por isso a súplica exclusivamente sentimental pode não dar o esperado resultado.

Nada impede, porém, que o magistrado leve em consideração na sua decisão, o aspecto sentimental e, sobretudo, o bom senso e a eqüidade, mas o que deve ser levado em conta mesmo é por vezes q difícil descoberta de quem está com a verdade e ao lado da justiça.

O julgador tem o dever de fundamentar o seu julgamento em audiência e explicar bem às partes as suas razões e acima de tudo documentar todo o seu veredicto. Não deve simplesmente dizer: “de tudo que se colheu até o momento o autor não tem razão”. Essa afirmação deve corresponder à demonstração de elementos fáticos e jurídicos produzidos.

Do juiz presidente da audiência exige-se também o uso do raciocínio lógico ao fixar os pontos controvertidos, ao apreciar preliminares ou incidentes, tais como contradita de testemunhas e incompetência ou impedimento, ao inquirir o depoente e finalmente ao sentenciar em audiência.

O magistrado precisa estar atento durante todo o transcorrer do ato para verificar mecanismos que levam ao erro de julgamento, como a mentira da parte ou de alguma testemunha. Não pode, como regra, extrapolar os limites da lide e não pode formular nem deixar que formulem perguntas desordenadas, desconexas, sem interesse ou sem nenhuma relação com os pontos controversos.

Cabe ao juiz não deixar que progrida a mentira e o engodo da testemunha ou a pretensão desta, às vezes inocentemente e na melhor das intenções, de dar parecer e opinião, salvo se ligada à narrativa de forma indivisível. Cabe-lhe exortá-la a responder direta e sinceramente as indagações. Também o próprio magistrado precisa apresentar-se com equilíbrio e serenidade na condução dos trabalhos, e formular com clareza e objetividade as perguntas.

O magistrado precisa velar por uma linguagem simples e judiciosa. Se a audiência for gravada, não deve se preocupar com a exatidão das palavras, mas deve ter o cuidado de não utilizar uma linguagem chula, baixa, palavrões ou ofensas. Quando for transcrever as perguntas e as respostas o magistrado dever observar a fidelidade das falas.

É o magistrado, como presidente, quem concede a palavra para os debates, autoriza os apartes, cassa a palavra e põe fim à palavra finalizando a audiência, sendo possível já realizando o julgamento em audiência.

O julgamento, oral ou escrito, é uma etapa significativa, na qual a última palavra cabe ao Judiciário, que definirá a lide, depois de ter sido feita a tentativa de conciliação, quando cabível, e toda a instrução. É então a vez do magistrado, encarnando o direito estatal, não de dar apenas um parecer, mas de adotar, com o que lhe parece, e tudo que dos autos constam, a opção decisória razoável e correta.

Para decidir na própria audiência, o juiz precisa já estar inteirado do contexto e da controvérsia, com o que se faz necessária sua prévia participação em todos os atos do processo. Isso lhe exige uma participação ativa na audiência: conciliando, dirigindo os trabalhos, passando para o papel, se necessário, as falas e as vozes, os testemunhos. Assim estará mais habilitado para sentenciar na presença de todos.

Presume-se o preparo técnico e intelectual do juiz a quem se dá uma nobre e causticante função de decidir com força do poderio estatal. A força da toga é para servir a sociedade e fazer justiça. Por isso, o juiz precisa ter independência, ser imparcial, ser paciente e ser diligente. Precisa ser ético o suficiente para não se deixar levar por fatores que não sejam apenas a causa maior de dar a cada um aquilo que lhe pertence.

O julgador não precisa isolar-se do mundo, nem o contrário. Não lhe é exigido ser o profeta anunciador de sua sentença ou de suas opiniões acerca da causa sobre a qual vai se deparar, prenunciando o seu resultado, inclusive para a imprensa. Daí dizer-se que o juiz é um solitário quando da elaboração da decisão. Fazer boa decisão muitas vezes é também maturar idéias, ir ao fundo da consciência e dos preceitos jurídicos.

Julgar em audiência requer o auxílio da lógica, da clareza das idéias, da objetividade e seguir os requisitos do ato: relatar, fundamentar e dispor.

O relatório é a parte em que o juiz diz com suas palavras, todo o histórico do processo até a data daquela audiência, consignando o contexto.

Os fundamentos consistem na apurada apreciação dos fatos e do direito do caso sob apreciação. Ao motivar, o juiz utiliza seu livre convencimento para sentir e para fazer a sua análise técnico-jurídica, sem abandonar as merecidas razões para os caminhos que vier a trilhar. Aqui por primeiro precisa enfrentar as questões preliminares, prejudiciais, se existentes, para só então, sendo preciso, entrar no mérito.

Finalmente ditará a disposição, sua imposição como agente estatal. Trata-se da ordem capaz de extinguir o processo sem análise do mérito, julgar procedente ou improcedente o pedido, condenar ou absolver o réu. É o momento imperativo e conclusivo de seu veredicto e é quando o magistrado resolve as questões. Após a conclusão, a sentença é tornada pública na própria audiência e na presença de todos.

Assim como na nossa Amazônia o rio comanda a vida, nos dizeres de Leandro Tocantins, igualmente na audiência, a palavra comanda as atitudes e os sentimentos dos presentes no ato de instruir, conciliar, debater e julgar. A palavra vai abstratamente de uma boca para outra, dirigida pelo magistrado e segundo a lei e o princípio do contraditório, realizando-se assim o canto do direito para o encanto da justiça.

 

* Vallisney de Souza Oliveira. Palestra proferida na “I Ciclo de Palestra sobre Temas Jurídicos” promovido pela Coordenação do Curso de Direito da Universidade Nilton Lins. Manaus, 03.04.2002.

 

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