Palestras - Palestra 3

02/ 03 /2015

Palestra 3

Juizados Especiais no âmbito federal – Criados pela Emenda Constitucional 22/99*

 

Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral de Justiça, Dr. Mauro Campbel Marques. Senhores Procuradores de Justiça. Excelentíssimos Promotores de Justiça da capital e do interior, aqui presentes. Senhores advogados e estudantes de Direito. Saúdo a todos com a alegria do encontro e com a ênfase do reencontro com eminentes membros desta instituição a qual já tive a honra de pertencer.

Em face da grande quantidade de medidas provisórias, planos econômicos, atos de desburocratização e de medidas governamentais na atividade econômica e social, decretos, resoluções, portarias e outros atos administrativos, muitos sem atenção necessária para com os princípios constitucionais, a Administração Pública Federal, Estadual e Municipal, e suas autarquias, tornaram-se a maior litigante junto ao Judiciário, especialmente no pólo passivo.

Essa situação torna-se mais aguda quando se trata de processo perante tribunais, considerando que a Fazenda Pública, vencida em primeiro grau, quase que invariavelmente, atua postulando a mudança da decisão nas instâncias mais elevadas, mesmo nas matérias já pacificadas na jurisprudência. Em razão disso, a Justiça Federal encontra-se com uma absurda quantidade de processos e não tem estrutura suficiente para responder a contento a toda essa demanda.

Até pela fixação de sua competência constitucional, sempre se tem compreendido a Justiça Federal como o palco jurídico das grandes causas, asserção um pouco irreal, pois a Justiça federal, da União, também processa e julga pequenas demandas, cíveis e criminais, e recebe causas do cidadão cotidianamente.

Basta-se saber quantas pessoas do povo requerem a implantação, o aumento ou a continuidade de um benefício previdenciário. No Norte-Nordeste são muitos os denominados soldados da borracha, postulantes do benefício constitucional previdenciário destinado aos brasileiros que contribuíram com o esforço de Guerra de 1945.

Também os correntistas com valores pequenos depositados em instituições bancárias oficiais pedem indenização por dano moral e material, os mutuários das casas populares junto ao Sistema Financeiro de Habitação pedem uma prestação justa, os servidores públicos se socorrem da Justiça Federal em ações de que não se pode dizer de grande expressão econômica, embora alguns deles de média ou grande complexidade. E daí e adiante podemos nos referir às milhares de pequenas causas, muitas delas idênticas, algumas um pouco semelhantes e outras bem diversas.

No âmbito penal, a Justiça Federal processa e julga ações, não somente contra o grande infrator, por exemplo, banqueiros e grandes empresários acusados de delitos em detrimento do Sistema Financeiro ou da Previdência. Mas também processa e julga quem comete falsidade em documentos públicos, o agricultor que invade terras públicas ou polui o meio ambiente, quem comete peculato ou pequenos furtos de pequenos valores em prejuízo de empresas públicas, de autarquias, da própria União ou de fundações públicas federais.

A criação de Varas Especializadas voltadas para as demandas de pouca expressão econômica e para os delitos cuja sanção seja pequena traz uma boa perspectiva para a Justiça Federal que se torna a destinatária desses novos e velhos interesses, muitos deles contidos e represados por variados motivos. Preparada devidamente para essas novas lides, a Justiça Federal poderá dar uma resposta satisfatória, aliando efetividade e celeridade, como requerem as causas com valores até certa quantidade de salários-mínimos ou nas referentes a crimes de pequeno potencial ofensivo.

Criados esses Juizados, centenas de milhares de processos, tais como os de aposentados do INSS, de mutuários do SFH, de correntistas de Bancos Oficiais e de servidores públicos passam a ter destino certo e especial: os Juizados Especiais, um novo ramo do Judiciário Federal com um novo método de se fazer justiça.

Com tal mudança de fluxo processual é possível sonhar que os Tribunais Regionais Federais e o Superior Tribunal de Justiça sejam liberados para examinar com mais velocidade e profundidade as ações e respectivos recursos que não serão transferidas para os Juizados Federais. Entre essas ações, citem-se: ações penais contra criminosos de colarinho branco; grandes delitos contra o Fisco; ações civis públicas ou por improbidade administrativa… E tantas outras causas complexas e de maior repercussão na sociedade que precisam de um Juiz atento e criterioso, que somente pode cumprir bem o seu papel com o tempo necessário e livre da angústia do excesso de trabalho e da variedade de matérias a serem apreciadas, quando poderá fazer uma cognição mais completa de causas desse jaez.

No âmbito estadual, a Constituição de 1988 criou os Juizados Especiais, regulamentados pela Lei 9.099, de 1995, efetivamente em funcionamento em todo o país com grandes serviços prestados à população brasileira, especialmente ao consumidor.

Agora o legislador constitucional brasileiro previu a criação dos juizados especiais federais, notícia altamente alvissareira, pois, em face da realidade por que vive a Justiça Federal com o excessivo número de demandas e com uma pletora de pequenas e grandes causas, faz-se imperiosa a efetivação de tal norma constitucional pela Lei Ordinária reguladora.

Instalados os juizados haverá oferta de um grande serviço judiciário federal à expressiva parcela da sociedade que pouco procura a justiça para solução de causas menores e menos complexas. A facilidade para transação e a conciliação nos Juizados Especiais Federais civis constituirão condição essencial para o sucesso dessa novidade. No âmbito criminal, a previsão do procedimento especial célere, com ampla possibilidade de transação entre o Ministério Público Federal e o réu, se apresentará como um dos mais importantes instrumentos de sucesso dos Juizados.

Em pleno funcionamento os Juizados Especiais Federais contribuirão para uma nova justiça federal, a justiça federal do futuro, mais célere, menos burocrática, mais perto dos problemas da população, tornando realidade a pretensão do legislador constitucional com a Emenda n. 22, de março de 1999.

Antes de falar dos Juizados Especiais Federais cumpre-me analisar sucintamente a Justiça Federal e os Juizados Especiais dentro de uma visão histórica, até o ponto de intercessão entre essas duas instituições.

A Justiça Federal surgiu com a República e foi prevista na Constituição de 1891. Porém, com a Constituição Getulista de 1937, depois de serem aposentados obrigatoriamente todos os juízes federais da época, a Justiça Federal do final do século XIX foi extinta. Sua competência constitucional passou a ser exercida pela Justiça da Capital do Estado do domicílio do autor, cabendo recurso para o Supremo Tribunal Federal.

Para substituir o Supremo nessa função recursal, a Constituição de 1946 criou Tribunal Federal de Recursos, como órgão da Justiça Federal, mas somente em segundo grau de jurisdição, uma vez que as causas envolvendo a União e os demais entes federais continuaram a ser decididas, em primeira instância, pela Justiça Estadual.

Entretanto, com o regime de 1964, por meio do Ato Institucional n. 02, de 1965, o Governo Militar modificou a Constituição Federal de 1946, recriando a Justiça Federal de Primeira Instância, permanecendo o Tribunal Federal de Recursos como órgão recursal. Por conseguinte, os primeiros juízes federais foram nomeados pelo Presidente da República entre cidadãos com mais de trinta e oito anos de idade, conforme o já revogado artigo 19 da velha e ainda viva Lei 5.010, de 1966.

A Justiça federal exerceu uma discreta participação democrática durante o Governo Militar, apesar de podermos dar alguns exemplos de decisões históricas prolatadas com coragem e determinação, como aquela em que um juiz federal em São Paulo condenou a União a indenizar os familiares do jornalista Vladimir Herzog.

A propósito, a respeito da condenação da União no caso Herzog, em plena ditadura militar, no ano de 1976, os senhores encontrarão uma entrevista recente com o prolator da sentença, o juiz do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Márcio José de Moraes, na Revista Época de 30 de outubro de 2000.

A Constituição de 1988 instaurou uma nova fase na Justiça Federal, com a extinção do Tribunal Federal de Recursos, órgão de segundo grau e a criação de cinco Tribunais Regionais Federais, sediados em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Recife.

Incumbido de zelar pela unidade da federação e das leis federais no país, a Constituição criou o Superior Tribunal de Justiça, de âmbito nacional, cujos primeiros integrantes eram os Ministros do Tribunal Federal de Recursos em atuação na época de sua extinção.

Assim, a Justiça Comum Federal foi formada, em primeiro grau, pelos juízes federais e, em segundo grau, pelos Tribunais Regionais Federais. Ao lado da Justiça comum federal, a mesma Constituição definiu as justiças especializadas da União, que não deixam de ser federais em sentido amplo: Justiças do Trabalho, Eleitoral e Militar.

Um aspecto a ser assinalado também, como marca do período posterior à Constituição, é a interiorização da justiça federal, fato que pode ser considerado positivo, especialmente pela necessidade do acesso à justiça nas cidades distantes das capitais e dos grandes centros urbanos.

Outra nota característica da Justiça Federal após a Constituição em vigor é a especialização. Foram criadas, e continuam sendo previstas em lei, inúmeras varas federais especializadas em matéria previdenciária, penal, execução fiscal, sistema financeiro da habitação etc., em diversos Estados da federação, como Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo, Paraná e outros.

A Lei 9.099, de 1995, que regulamentou o art. 98, inciso segundo, da Constituição, avançou muito em termos de sumarização do processo, oralidade e pronta resposta à demanda, consistindo em nova fórmula de encarar e encerrar a lide.

Paulatinamente, os Juizados Especiais foram postos em funcionamento. Essa implementação gradual nas Justiças dos Estados da Federação contribuiu para diminuição de demandas simples e também para atenuar os intensos conflitos sociais do mundo contemporâneo. E também atendeu ao postulado democrático da justiça do povo, pelo povo e para o povo, já que nele participam pessoas estranhas aos órgãos judiciários, como conciliadores e juízes leigos.

A Emenda Constitucional 22, de 1999, previu os Juizados Especiais no âmbito Federal, nos termos do que dispusesse a lei infraconstitucional, com o propósito de processar, julgar e executar as causas de pequena complexidade e as infrações de menor potencial ofensivo.

Estamos diante de um futuro revolucionário para a Justiça Federal, que, ao lado da interiorização e da especialização, com os Juizados Especiais enfrentará novos desafios e abrirá novos caminhos para o acesso real à Justiça.

Espera-se que esse novo setor judicial seja informal, econômico, simples, célere, oral, acessível ao povo, humano, conciliatório, capaz de aproximar sensitivamente o juiz federal da comunidade e contribuir para a universalização da jurisdição em benefício da cidadania e da democracia.

Que os Juizados federais se tornem um porto de esperança e de realização de direitos de pessoas que até então tiveram muitas dificuldades de promover suas respectivas demandas contra a Fazenda Pública. Que seja a justiça dos aposentados, dos servidores públicos, dos pobres em busca de reparações, dos vitimados dos acidentes de trânsito, dos que sofreram danos morais e materiais em face da atuação do Estado e de seus agentes ou de empresas públicas. De pessoas que não podem, nem devem, aguardar por décadas para a resolução de uma lide, porque o sistema recursal e executório a ser implantado não trará privilégios nem amarras legislativas, sendo simples e operativo.

É importante retirar da apreciação dos Juizados as causas complexas de grande valor econômico para não se atrapalhar o procedimento e criar-se incidentes demasiados. A Lei a se criar deveria deixar de fora os litígios entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e município ou pessoa domiciliada ou residente no Brasil. Também deveriam ficar de fora demandas fundadas em tratados ou contrato da União com estado estrangeiro ou organismo internacional. Também poderiam ficar de fora as disputas sobre direitos indígenas, os mandados de segurança, as ações populares, as execuções fiscais, as causas de improbidade administrativa, e os direitos difusos e coletivos, entre outros, prevendo-se um rito único e simples.

O legislador deverá preocupar-se com a viabilidade dos futuros juizados, que não poderão se sobrecarregar de complexas demandas, sob pena de já nascer com grandes dificuldades de operação.

Não se pode deixar de mencionar a possibilidade de funcionamento dos Juizados Especiais Federais itinerantes para a distribuição da justiça e da realização da cidadania nos municípios onde a Justiça Federal não consegue chegar, como é o caso do interior do Amazonas e outras áreas da região amazônica.

Os Juizados Federais poderão contar com conciliadores e outros colaboradores a fim de aproximar-se de uma justiça equânime, pacificadora, direta, múltipla e democrática.

Não menos importante é a manutenção do sistema de julgamento para Turmas recursais, que podem abranger mais de uma Sessão Judiciária Federal. É fundamental que os recursos não sejam apreciados pelos Tribunais Regionais Federais, que deve se voltar para outras espécies de demandas e continuar a administrar a justiça de primeiro e segundo grau no âmbito de sua respectiva atuação.

Para um melhor funcionamento dos Juizados Federais é essencial que haja uma prévia e expressa autorização para o acordo a ser dada aos procuradores da Fazenda Pública. Os representantes dos Entes Federais devem ser autorizados a comparecer nas sessões de conciliação com esse espírito aberto e com o propósito também de, como agentes públicos, colaborarem com a justiça rápida e efetiva. Também nos Juizados Especiais essa cultura da litigância e da impossibilidade da transação deve ser repensada pela Fazenda Pública, para que se realizem dois dos princípios basilares dos Juizados especiais: a paz pela conciliação e a justiça em tempo célere ou pelo menos em tempo razoável.

Num primeiro momento é necessário mudar o costume, quebrar tabus, flexibilizar regras, estimular o acordo judicial e extrajudicial, e usar todo o aparato dos Juizados Especiais para esse propósito de composição. Num segundo momento é preciso que as partes saibam que a decisão judicial, prosseguindo o processo, não será demorada, mas de imediato cumprimento.

Além disso, a rapidez almejada não pode tolerar tratamentos privilegiados, prazos diferenciados, remessas obrigatórias, intimações pessoais e nos autos e tudo que possa inviabilizar o desejo de uma justiça mais igualitária e mais instantânea possível.

A efetiva implantação dos Juizados será primordial para o acesso à justiça em rincões distantes, como na Amazônia, onde, para pequenos litígios, a parte sucumbente pobre ou do interior de Estados distantes tem dificuldade para recorrer ao Tribunal Regional Federal, com sede em Brasília.

Os Juizados Especiais demandarão estrutura e recursos públicos para seu regular funcionamento. É necessário constante treinamento e curso de aperfeiçoamento aos magistrados e servidores pelo Conselho da Justiça Federal, Tribunais Regionais Federais e Escolas Federais de Magistratura.

É vital o aparelhamento não apenas do Judiciário, mas também do Ministério Público Federal, da Defensoria Pública da União, dos advogados do Poder Público a fim de se realizar um modelo eficiente e útil.

É imperioso aparelhar devidamente a Justiça para poder cumprir missão de resolver conflitos, de apaziguar violências, de satisfazer pretensões resistidas e rebatidas, de reparar defeitos de atos jurídicos, de prestar serviço jurídico ao povo, não somente à população das capitais, assim como também do interior deste rico e pobre rincão brasileiro. É sua função atender e atender com eficiência, aos cidadãos para amenização dos problemas sociais, para fazer face às expectativas humanas de paz jurídica, de ressoar a justiça e a esperança para os brasileiros.

O aparelhamento humano, técnico e estrutural requer dos advogados o desempenho do mandato com proficiência; dos cidadãos, agentes públicos, litigantes, enfim, de todos intervenientes exige-se atuação de acordo com os princípios republicanos de segurança e liberdade. E também de justiça, nobilíssimo bem que o ser humano almeja.

No âmbito da sua competência os Juizados Especiais Federais prestarão imprescindível serviço à população, sobretudo de baixa renda e para causas de pequena monta. No entanto, poderá ser servil igualmente a pobres e ricos, a novos e velhos, a pessoas sãs e a portadoras de deficiência e poderá tornar-se um notável departamento da Justiça Federal em que o julgador manterá contato de direto com o povo, sem intermediários, obstáculos ou rigorismo formal.

É missão estatal dar acessibilidade, brevidade e facilidade para a resolução dos problemas da sociedade consumidora da Justiça. É esse lema que se espera que norteie o legislador da Lei dos Juizados Especiais Federais. Que ele possa influenciar-se não por um modelo tradicional e usual de justiça, mas por um modelo inovador, engenhoso, prático e simples. Isso engrandecerá a justiça federal no seu papel de defesa dos direitos e da cidadania.

 

* Vallisney de Souza Oliveira. Palestra proferida no “I Ciclo de Palestras de Direito Processual do Ministério Público”, Ministério Público do Estado do Amazonas. Manaus, 27.10.2000.

 

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