Palestras - Palestra 2

28/ 01 /2015

Palestra 2

Sistemas de Provas no Direito Brasileiro*

 

Ilustres autoridades aqui presentes. Prezados professores. Caro Professor Luiz Rodrigues Wambier, eminente processualista e notável escritor de Direito Processual Civil. Eminentes advogados, minhas cordiais saudações. Saúdo também todos os estudantes dessa nossa estimada Faculdade e os de todas as outras desta nossa cidade. Faço uma saudação especial aos organizadores do evento, em especial à estimada Aurely Freitas. Caros ouvintes. Senhoras e Senhores.

Entende-se por sistema, em direito, o conjunto de normas emanadas por e para a atuação Estatal, coordenadas para uma finalidade e compostas por um todo orgânico. Sistema de provas significa o conjunto de regras vigentes relacionadas com a produção de atos visando ao descobrimento da verdade no processo.

Os sistemas diferem dos princípios, estes constituídos pelos preceitos jurídicos inspiradores e orientadores de um determinado sistema, embora não haja óbice para que os princípios possam estar inseridos no sistema, o que lhes dá mais certeza e mais facilidade na aplicação de seus enunciados.

Os princípios são como o sangue percorrendo o sistema cardiovascular, dando-lhe sopro vital e sendo a razão da vida do ser. Porém, o sangue (princípio) não circula somente pelos vasos do coração (sistema), mas por todo o corpo humano, que contém outros sistemas, propiciando alguém a respirar, a pensar, a andar e a seguir com vida. Assim são os princípios em relação ao sistema probatório.

Prova é a demonstração da verdade sobre um fato ou uma afirmação dele levada e discutida em juízo. Prova é o meio pelo qual se leva ao conhecimento do julgador as afirmações de um fato o mais verossímil possível, a fim de influenciar na tomada da decisão judicial.

Provar, conforme o mestre Moacyr Amaral Santos, quer dizer convencer o espírito da verdade sobre alguma coisa. Para Carnelutti a prova é a atividade espiritual voltada para a verificação de um juízo. Com a prova se busca apresentar ao juiz o que na realidade ocorreu sobre determinada situação ou qual a real versão desse fato jurídico. A atividade das partes faz com que a prova possa revelar-se perante o magistrado. Mas também, mesmo de ofício, esta autoridade não está impedida de averiguar a afirmação fática que mais se insere na verdade, para assim poder decidir melhor.

Os sistemas de avaliação ou de valoração de prova judiciais, adotados na história do direito são os meios e as práticas de liberdade de aferição dos acontecimentos no processo a fim de ensejar a decisão. Alguns sistemas ensejam pouco ou nenhum poder para o julgador decidir e outros, ao contrário, possibilitam uma demasiada liberdade ao juiz na condução do processo e na investigação probatória.

Dentro de uma perspectiva histórica, salientam-se três sistemas probatórios de aferição judicial. O primeiro é o sistema tarifário, também conhecido como legal ou positivo. O segundo é o sistema do livre convencimento, chamado de íntima ou livre convicção. Por último, o sistema da persuasão ou convicção racional, denominado ainda de livre convencimento motivado.

Pode-se dizer, portanto, que no campo das provas o Direito Processual sofreu várias experiências, com passagem por caminhos que vão do culto inflexível e cego até o seu extremo, a desconsideração total da prova produzida.

A partir do início da Idade Média foram utilizados judicialmente como meio de prova as ordálias ou juízos de Deus. Também já foi utilizado o juramento e o duelo e já foram recebidas como experiência as provas testemunhais e documentais dos romanos. Na segunda metade da Idade Média, experimentou-se um sistema de prova com traços diferentes dos utilizados pelos romanos, influenciado principalmente pelas máximas doutrinárias da época e pelos ordenamentos jurídicos europeus.

As ordálias eram desumanos meios de prova, seja com pisar em brasa, receber picadas de serpentes, e se o acusado, mesmo padecendo pelo meio de prova, sobrevivesse, era tido como inocente. Era um irracional sistema medieval. Nesse sistema de inegável formalismo e rígido de tabelamento, o julgador não tinha liberdade para decidir, razão pela qual sua função se assemelhava a de uma calculadora servil à aritmética da prova.

O magistrado não decidia, porque obedecia à sorte, à vontade de Deus, aos fenômenos naturais. Nesse sistema era corrente a tabela de valores para os depoimentos. A palavra de um nobre era incomensuravelmente mais importante do que a de um escravo, a de um homem infinitamente maior do que a de uma mulher, a de um adulto muito mais valiosa do que a de uma criança. Por isso mesmo se denominava sistema tarifário, onde reinava a matemática e o tabelamento probatório.

Esse sistema mecanizava a atividade judicial e amarrava o juiz, que não podia fazer justiça particularmente e de acordo com a sua consciência, nem com as evidências. Enfim, no tarifário não havia liberdade judicial na valoração da prova e nele o juiz era simplesmente um autômato ou uma Deusa de Pedra na relação processual.

No outro polo encontra-se o sistema da livre (ou íntima) convicção ou apreciação, pelo qual o juiz não estava amarrado à objetividade das provas, mas ao seu sentimento pessoal. Seu exame da lide e seu trabalho investigativo eram realizados sem qualquer óbice e sem precisar motivar sua decisão.

Nessas circunstâncias, as provas constantes dos autos constituíam mero referencial, não estando o magistrado obrigado a segui-las. Incumbia-lhe usar o melhor critério (seu) para decidir, tanto que podia julgar contrariamente ao que foi apurado nos autos.

Era a liberdade total. Trazia o risco da decisão arbitrária, pela falta de meios de controle e critérios objetivos para o julgamento, pois se decidia sem nenhum controle racional ou legal.

Sem limites, o juiz dava às provas o valor que quisesse dar, podia recusá-las, inferiorizá-las, ignorá-las, o que levava a um alto nível de subjetividade e insegurança para as partes.

O último sistema, o da convicção ou persuasão racional, defere ao juiz o poder para apreciar livremente as provas, o poder de persuadir-se com razão e elementos objetivamente considerados. Cabia-lhe extrair dos autos o núcleo do seu entendimento para decidir. Era ele quem dava valor às provas, mas não fazia isso livremente, pois havia parâmetros a serem seguidos, sem que tais parâmetros retirassem sua liberdade de julgar.

Esse sistema se posicionou entre os dois extremos: o da prova tarifada e o da liberdade sem limitações. Os limites judiciais encontram sua razão de ser na necessidade da fundamentação, da apresentação das razões judiciais.

Inegavelmente, esse sistema defere ao magistrado a liberdade para julgar de acordo com suas impressões e sentimentos acerca das provas produzidas, inclusive para determinar de ofício a vinda do material probatório para os autos, visando a formar o seu convencimento. Em geral respeitadas algumas regras da preclusão, nele o julgador não encontra barreiras, para admitir provas, produzi-las, senti-las e julgar de acordo com o seu sentimento, à luz do direito.

É certo que a liberdade judicial para persuadir-se livremente não significa que o magistrado possua poderes ilimitados para decidir com fundamento exclusive em seu conhecimento particular sobre os fatos, pois tal entendimento acarreta o arbítrio e a insegurança na administração judiciária.

Como linha de princípio não existe hierarquia entre espécies de prova. Cada uma delas vale pelo seu conteúdo e pela sua força probante, de acordo com cada situação concreta. Desde que demonstre as razões do entendimento a que chegou, na aferição das provas, tais como documentos, laudos, testemunhos etc., o juiz tem poder para, no momento próprio, admiti-las, rejeitá-las, reconhecê-las e aferi-las devidamente, podendo assim reconhecer um fato ou desprezá-lo.

Não é difícil perceber as vantagens desse sistema, afinado com a justiça e com a verdade, grande sustentáculo de um julgamento límpido e sem influências indesejáveis e deletérias.

O sistema de provas brasileiro se aproxima bastante do sistema da persuasão racional, uma vez que o juiz tem liberdade na apreciação da prova, podendo buscá-la até de ofício.

Além disso, são admitidos todos os meios de prova, desde que não sejam ilícitos e sejam moralmente legítimos. Vale lembrar que a prova produzida pelos meios ilícitos é terminantemente vedada pela Constituição Federal.

No entanto, do sistema legal ainda existem manifestações, embora mínimas, na legislação pátria. Por exemplo, o artigo 366 do CPC de 1973 estabelece que “quando a lei exigir, como da substância do ato, o instrumento público, nenhuma outra prova, por mais especial que seja, pode suprir-lhe a falta”.

Também existem outros exemplos dos reflexos desse sistema no Código Civil, no Código de Processo Penal etc. A propósito, o artigo 62 do Código Processual Penal reza que, para se decretar a extinção da punibilidade por morte, a prova deve ser exclusivamente a certidão de óbito do réu, não se aceitando outro meio probatório.

Algumas decisões de tribunais do nosso país não dão o valor devido à prova testemunhal, quando desacompanhada do início de prova documental, aproximando-se assim da valorização extremada da tarifa probatória.

A nossa jurisprudência está repleta de exemplos da aplicação de regras restritivas à prova, em especial à prova testemunhal, que em grande parte das situações perde cada vez mais o seu valor, principalmente quando desacompanhada de qualquer documento. Aliás, a testemunhal já foi alcunhada de a prostituta das provas. Ao contrário, a prova documental tornou-se a primeira dama das espécies de provas, uma vez que enseja segurança jurídica e agilidade processual, ainda mais porque os documentos são geralmente juntados com a inicial ou com a contestação.

Hoje não se pode dizer que exista um desses sistemas de forma pura em algum ordenamento. Todavia, naquele fundado no direito do common law, que deu origem aos júris populares, o sistema de convicção se tornou mais presente, enquanto os ordenamentos ocidentais do civil law aproximaram-se mais do sistema da livre convicção racional, apesar de apresentarem pequenos traços do sistema legal, como é o nosso caso. Obviamente, o sistema que rejeita os dois extremos, quais sejam a prova legal e a íntima convicção, é o mais conformado com os valores da democracia e do devido processo legal estes postos na Constituição Federal como princípios de fundamental relevância.

O Brasil possui uma magistratura técnica, escolhida constitucionalmente e preparada adequadamente, abnegada e cumpridora da sua missão de fazer justiça, o que justifica, salvo raras exceções, o estabelecimento da escolha e prevalência do método da persuasão racional na avaliação das provas, este mais afeiçoado com a independência e a imparcialidade inerente ao Judiciário forte e independente.

O sistema de valoração de provas em conformidade com o due process of Law é o que estabelece a persuasão racional e os princípios a ele inerentes, no qual há liberdade para a avaliação e do uso dos meios de prova. Essa liberdade é concedida tendo em contrapartida o dever do magistrado de dizer as razões pelas quais se convenceu da veracidade daquela espécie de prova utilizada.

Por fim, no sistema de persuasão racional, não há lugar para discriminações e preconceitos. A confissão não pode mais ser chamada a rainha das provas; a prova documental ser conhecida como a mais nobre, a mais pura e santa das provas; o testemunho ainda ser apodado de a prostituta das provas. Todos os meios são úteis e belos na passarela do processo para os olhos da justiça, da justiça sem olhos vendados, mas, ao contrário, de olhos bem abertos, cada vez mais abertos para a nobre formosura da verdade.

 

* Vallisney de Souza Oliveira. Palestra proferida no Seminário promovido pela Faculdade e pelos formandos em Direito da Universidade Federal do Amazonas – UFAM. Manaus, 08.2000.

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