Palestras - Palestra 1

06/ 01 /2015

Palestra 1

Liminar em Mandado de Segurança

Cumprimento os membros da Mesa na pessoa do Prof. Clynio Brandão, Vice-Diretor da Faculdade de Direito. Cumprimento os advogados e demais autoridades presentes e ainda os estudantes de Direito da Universidade Federal do Amazonas e de todas as outras Universidades.

Cumpre-me falar sobre a tutela mandamental liminar, espécie de tutela provisória que cresce, a cada dia, nos juízos e tribunais do país. Essa medida tem cabimento no mandado de segurança, ação constitucional já com muitos anos de existência, criação autenticamente nacional, ainda objeto de muitas questões não pacificadas pelo tempo, nem na literatura jurídica, nem nos tablados forenses brasileiros.

Antes de prosseguirmos com a exposição faz-se necessário apresentar alguns caracteres históricos legislativos do mandado de segurança.

No fim do Século Dezenove surgiu no direito brasileiro o habeas corpus como uma grande conquista do direito à liberdade. O habeas corpus podia ser concedido sempre que o indivíduo pudesse sofrer ou se achasse no iminente perigo de sofrer violência ou coação em decorrência de ilegalidade ou abuso de poder, segundo a Constituição de 1891. Esse instituto passou a ser interpretado com largueza de modo a proteger não somente a liberdade física, mas também qualquer outro direito do indivíduo.

No entanto, a Emenda Constitucional de 1926 pôs fim ao uso generalizado desta ação, que voltou a ser concentrada, exclusivamente, na proteção da locomoção física do cidadão. Na nossa primeira Constituição Republicana, com a redação dada pela Emenda 03, de 1926, somente cabia o habeas corpus quando alguém sofresse ou se achasse em iminente perigo de sofrer violência por meio de prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade de locomoção.

Por conta dessa situação peculiar, sem embargo de diversas discussões doutrinárias à época, muitos direitos individuais do povo contra os abusos do Poder Público ficaram sem previsão jurídica e sem a devida proteção a partir de 1926, até que em 1934 nasceu constitucionalmente o mandado de segurança.

O que se visava com o novel instituto era a proteção urgente a direitos que não consistiam, simplesmente, na liberdade de locomoção, como era o caso de certos direitos de servidor público contra perseguição política do Chefe Político ao qual se vinculava e direitos do cidadão contra abusos de poder governamental, entre outros. E isso ocorreu graças à Constituição de 1934 que, ao resolver o problema desse vácuo normativo, estabeleceu que o mandado de segurança se destinasse à defesa do direito certo e incontestado ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade. Dois anos depois o novo instituto passou a ser regulado pela Lei 191, de 1936.            Sob a égide da Constituição de 1946, que manteve sua previsão, no plano infraconstitucional o mandado de segurança foi amplamente tratado na Lei 1.533, de 1951, complementado depois pela Lei 4.348 de 1964.

É certo que a Constituição Ditatorial de 1937 não previu o mandado de segurança, ao contrário de todas as posteriores, como as Constituições de 1946 e 1967 e respectiva Emenda Constitucional número 01, de 1969, que reiteraram a ação mandamental.

Igualmente, a Constituição de 1988 reiterou esse writ e previu ainda a modalidade de mandado de segurança coletivo. O inciso LIX do seu art. 5° da Constituição atual expressa ser cabível mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.

A liminar no Mandado de Segurança consiste na decisão do juiz que, ao despachar a inicial, ordena que se suspenda o ato que deu motivo ao pedido, quando for relevante o fundamento e da ação ou omissão impugnada em Juízo puder resultar a ineficácia da futura decisão ou prejuízo inclusive irreversível ao jurisdicionado.

No direito processual brasileiro a liminar não é instituto apenas do mandado de segurança, pois pode ser concedida em outros procedimentos judiciais como nos possessórios e cautelares, naqueles relativos à ação civil pública e ação popular. Também no processo civil comum pode a parte pedir e receber uma tutela antecipada com os mesmos efeitos de uma liminar no mandado de segurança.

Na verdade, o que a liminar tem de importante e interessante é o seu caráter de ordem, de necessidade de imediato cumprimento, independentemente de uso de recurso pela parte atingida pela ordem. Essa característica faz com que o mandamento judicial liminar deva ser cumprido prontamente, sob pena de a autoridade impetrada vir a incorrer em sanções processuais e criminais pela sua contumácia. E o que a liminar enseja é efetividade e celeridade com e pelo processo, para que se possa trazer segurança jurídica e satisfação aos consumidores da prestação jurisdicional.

Infelizmente, envolvida com o excesso de litígios e de demandas, a efetividade e a rapidez ainda constituem um ideal a ser alcançado na Justiça Brasileira. Isso é facilmente percebido no dia a dia dos tribunais. Todos nós sabemos que geralmente o recebimento do bem pretendido perante o juiz se dá ao final de longa jornada processual, seja em decorrência da decisão final tardia, seja com suspensão dos efeitos da sentença, em face dos inúmeros recursos existentes no ordenamento jurídico nacional, seja ainda com o cumprimento executivo demorado e pouco operativo do título judicial.

O princípio da inafastabilidade da jurisdição é uma das maiores garantias democráticas do constitucionalismo brasileiro e é nesse contexto que se sobressai a tutela liminar. A Constituição de 1988 deu abrangência a esse princípio ao inserir no inc. XXXV do art. 5° que ao Judiciário não se pode opor obstáculos para se averiguar por meio do processo adequado a existência de qualquer lesão ou ameaça a direito.

O preceito constitucional da inafastabilidade não assegura apenas acesso ao Judiciário no papel, mas acesso real ao ordenamento jurídico instrumental e funcional, a fim de que o Estado garanta a todos os jurisdicionados, pessoas físicas ou jurídicas, brasileiros ou estrangeiros, uma tempestiva proteção contra a violação de direitos e contra injustiças de quaisquer espécies. Basta alguém se sentir lesado ou ameaçado de lesão na sua integridade moral, no seu patrimônio e em outros bens jurídicos para, querendo, ingressar com uma ação perante o Judiciário, guardião da justiça e da ordem jurídica.

Ao invocar a tutela judicial o cidadão pode, apresentando os requisitos necessários para ser beneficiário da medida, receber proteção liminar, mecanismo jurídico existente em diversas ações brasileiras, e especificamente no processo de mandado de segurança.

A liminar afigura-se como uma das manifestações mais eficazes da inafastabilidade da prestação jurisdicional e operacionaliza esse preceito constitucional, pois de nada vale a movimentação da dispendiosa máquina judiciária se o juiz não tiver condições de prestar o devido socorro estatal a um dos litigantes que a priori comprove o seu direito e prove a iminência de dano que possa vir a sofrer pela demora em ser apreciada a sua pretensão e garantido o direito invocado em juízo.

Não seria legítimo nem coerente com a realidade jurídica que a necessidade de cumprimento de etapas processuais, a busca da decisão apta a fazer coisa julgada e em nome do contraditório prévio e da irrestrita defesa se impedisse o deferimento de liminar a quem demonstre desde logo seu direito de receber a tutela estatal prévia e urgentemente.

Decerto, nessas hipóteses a cláusula do due process of Law seria violada também, uma vez que não se teria um processo devido se o Estado ficasse em débito, por não prestar o serviço efetivo da justiça ao jurisdicionado, deixando-o à míngua e ao desamparo contra atos violadores de seu direito.

Por essas razões, penso que a regra que autoriza a concessão da liminar prevista na Lei do Mandado de Segurança não afronta o princípio do contraditório expresso na Constituição. Ao contrário, a liminar tem esteio constitucional. Constitui exigência do acesso à justiça efetiva e rápida e é exigência do devido processo legal no seu sentido material, dois dos mais importantes princípios da Constituição Federal de 1988.

A concessão de liminar mandamental, sem oitiva do réu, isto é, inaudita altera parte, não fere o princípio do contraditório. O demandado sempre terá oportunidade de ser ouvido no decorrer do procedimento e poderá interpor os recursos pertinentes contra a decisão judicial que deferiu a liminar. Tal medida poderá ser a qualquer tempo cassada ou modificada, se as razões nesse sentido forem sentidas pelo órgão judiciário.

A decisão com esse teor não transgride nenhum princípio constitucional. Dada em atenção à inafastabilidade da prestação jurisdicional, não elimina o contraditório, que pode ser utilizado no decorrer do processo e imediatamente à concessão da ordem liminar.

A liminar consiste na antecipação temporal do que poderia ser deferido somente ao final. No mandado de segurança a liminar implica antecipação de efeitos necessários para acautelar o direito do autor, com carga de probabilidade em face de uma situação emergencial. Somente o impetrante pode ter direito à liminar, uma vez que no mandado de segurança não há possibilidade de pedido contraposto, isto é, formulado na defesa intraprocessual, por parte do impetrado ou pela pessoa que sofrerá o ônus da tutela concedida.

Discute-se na doutrina brasileira sobre a natureza dessa liminar. Para alguns se trata de tutela meramente acautelatória ou cautelar e para outros de medida antecipatória do mérito. Convenço-me de que a liminar em mandado de segurança pode tanto ter natureza cautelar como de antecipação de tutela ou satisfativa. Apesar de seu fim precípuo ser o de evitar a ineficácia da sentença e a inocuidade do direito pleiteado, pela espera do processo, em algumas situações pode mesmo entregar o bem almejado pelo impetrante, antecipando o seu próprio pedido final, não se restringindo, nesta hipótese, a assegurar a eficácia da medida.

De todo modo, as normas do procedimento cautelar compatíveis com o mandado de segurança são aplicadas subsidiariamente, com exceção das que tratam especificamente dos requisitos da liminar, porque neste caso a legislação do mandado de segurança possui regras específicas, que devem prevalecer.

Não há nenhum óbice para que a liminar mandamental aparente natureza dúplice, dependendo da pretensão do impetrante. O juiz pode com a liminar em mandado de segurança antecipar ou acautelar. Mas devem estar presentes os requisitos da relevância dos fundamentos e o periculum in mora. O primeiro diz respeito ao direito material pleiteado na segurança. O segundo se refere à exigência de se prevenir provável dano que esse direito possa sofrer enquanto o interessado, que aparenta merecer o amparo, aguarda a tutela definitiva ao final do processo.

Por fundamentos relevantes, pode-se entender estar o pedido de liminar em harmonia com os fatos descritos na inicial. Por meio das provas apresentadas com esta petição, é possível antever, desde logo, que o direito a ser acautelado será protegido com a sentença a ser prolatada. Pressupõe que o impetrante possui alta probabilidade de ser titular do direito líquido e certo alegado. O termo fundamento é referência ao direito, ao passo que a expressão relevante faz referência à importância desse direito, ou seja, à certeza e à liquidez desse direito.

A situação jurídica apresentada deve ser mais do que aparente, de modo a dar ao pedido do autor probabilidade de ser acolhido pelo Judiciário.

Em outras palavras, dentro de um apurado tecnicismo, com pouca importância prática, porém, a relevância dos fundamentos deve ser considerada pressuposto bem mais amplo do que o fumus boni juris do processo cautelar. No mandado de segurança a prova documental acostada à inicial deve ensejar um maior leque de conhecimento para o juiz decidir se concede ou não a liminar. Isso não acontece no procedimento cautelar, essencialmente documental, no qual o autor poderá produzir prova testemunhal ou pericial, por exemplo, no decorrer do procedimento.

A relevância dos fundamentos do pedido exige desde logo documentos com a inicial para que o juiz possa identificar, com certa margem de segurança, o direito líquido e certo do autor. O fumus boni iuris, no processo cautelar, requer apenas a possibilidade de um direito futuro favorável à parte, sem a necessidade de prova previamente constituída.

A relevância está ligada ao fato de o direito material demonstrado encontrar-se apto a gerar a concessão do pedido liminar, pela coincidência entre os fatos narrados na inicial em consonância com a provável sentença a favor do autor, e não propriamente com a importância econômica ou política ou, ainda, com a importância do ramo de direito material.

O outro requisito para a concessão da liminar em mandado de segurança é o que se convencionou chamar de periculum in mora, correspondente ao perigo da ineficácia da medida.

Como o ato administrativo é autoexecutório, se não for suspenso pela via judicial será consumado ou continuará produzindo efeitos, com prejuízos para o impetrante, salvo quando se tratar de omissão administrativa, porque neste caso o que pretende o autor é a prática do ato pela Administração.

A concessão da liminar terá o condão de sustar o efeito jurídico desses atos na esfera dos direitos do postulante, afastando o perigo do dano iminente ou consumado.

Ou melhor, estará presente o periculum in mora, capaz de levar à concessão da liminar se atendido o outro pressuposto mencionado, toda vez que o perigo da demora do procedimento do mandado de segurança acarretar uma situação de prejuízo ao impetrante, com a executoriedade do ato apontado como coator. Tal pressuposto não se confunde com a irreparabilidade da medida ou dano de difícil ou impossível reparação, mas se relaciona ao dano que está sujeito o impetrante, à vista da ação ou omissão da autoridade coatora.

A possibilidade da expedição da ordem judicial liminar no mandado de segurança é fator de fundamental importância para a realização e preservação de direitos em benefício de quem procura o Judiciário visando a uma resposta breve e efetiva do Estado. Trata-se de característica dessa espécie de ação útil para o usuário do serviço judicial, que não fica ao desamparo nas suas ações contra a Fazenda Pública.

A importância da liminar mandamental se acentua pelo escopo de resguardo de direitos que exigem cada vez mais proteção, em face do modo de vida societário atual: da população que aumentou vertiginosamente nas últimas décadas; dos constantes e inevitáveis conflitos do cotidiano na sociedade de massa; das demandas e necessidades urgentes do povo, sejam crianças, adolescentes, adultos, idosos, pessoas saudáveis e portadores de deficiência; das relações rápidas e fluidas, pessoais e empresariais; do desejo pessoal por bens múltiplos, atuais e urgentes, em descompasso com o aparelho Judiciário que se movimenta em outro – lento – compasso. Ressalto que a característica do nosso Direito Processual é produto da cultura herdada do Direito Continental Europeu, no qual impera o entendimento de que é pressuposto para a jurisdição definitiva a necessidade do amplo conhecimento da controvérsia, com um curso ritualístico até o seu termo final, depois de longa fase cognitiva e recursal.

Em que pesem as divergências doutrinárias e jurisprudenciais sobre diversos assuntos ligados ao tema, a ação mandamental é uma criação jurídica brasileira arraigada na nossa tradição jurídica e sua liminar constitui um dos fortes instrumentos processuais para efetivação e consecução de uma justiça célere e eficaz.

Além disso, não se pode dizer que a liminar transgride qualquer princípio processual constitucional como o contraditório ou a ampla defesa, pois sendo uma necessidade da vida do direito é também uma essencialidade procedimental e acima de tudo porque nenhum princípio possui absoluta aplicabilidade.

Enfim, as liminares em mandado de segurança, concedidas dentro dos parâmetros jurídicos de razoabilidade e justiça, não ferem preceitos constitucionais e sua técnica precisa ser cada vez mais aprimorada a fim de que se alcance o equilíbrio entre segurança jurídica e presteza judicial. Presentes os requisitos autorizadores, o juiz deve incondicionalmente concedê-las, pois a proteção plena a direito, urgente quando necessária, reforça a garantia democrática. Ambos os institutos, o mandado de segurança e sua liminar, são armas implacáveis em benefício daquele que perante o Judiciário demonstra que seu direito líquido e certo, isto é, seu direito cristalino e induvidoso, está ameaçado ou foi violado.

 

Vallisney de Souza Oliveira (VSO). Palestra proferida no Seminário realizado pela Faculdade e pelos Formandos em Direito da Universidade Federal do Amazonas – UFAM. Manaus, 20.12.1999.

categoria: Palestras