Discursos - Discurso 2

23/ 01 /2015

Discurso 2

Há Juízes em Berlim!*

Senhor Desembargador José Baptista Vidal Pessoa, Diretor da Escola da Magistratura, Juiz Coordenador da Escola, Dr. Flávio Pascarelli Lopes. Caríssimo orador e representante da Turma Júlio Antônio Lopes. Paraninfos e familiares. Senhoras e Senhores.

Aqui estamos reunidos para a despedida de valorosos bacharéis que buscaram esta Escola na expectativa de conhecimentos e experiências para os embates futuros da magistratura, carreira que, dentre as muitas que se abrem aos graduados em Direito, tencionam seguir.

Congratulo-me a vós – os chamados entes queridos – que por força do afeto, do sangue, da afinidade ou do sentimento participais deste momento. Estendo minhas congratulações aos dirigentes, aos professores e aos servidores da Casa, que também deram grande contribuição para a realização desta festejada ocasião.

Esta Escola de Magistratura, semelhante a tantas existentes no Brasil e em outros Estados contemporâneos, vem empenhando-se no aperfeiçoamento do seu curso, que não se reveste apenas de relevância técnica, mas também de relevância política e social. Daqui afluem inúmeros bacharéis em Direito em busca do aperfeiçoamento dos seus estudos e magistrados e servidores em busca de aprimoramento para o melhor exercício da profissão jurídica.

Prezados Alunos. Vós sois nesta noite a matriz de toda essa alegria que vai pelo ambiente e contagia todos os que aqui vieram abraçar-vos por haverdes tido êxito em mais um trecho dessa viagem jurídica cheia de tropeços pelo agitado rio da vida cheio de tocos, ondas, redemoinhos e que só quem sabe bem navegar é capaz de chegar ao cais do sucesso. Fui vosso professor no curso que, apesar de dificuldades de toda ordem, acabais de concluir.

Hoje, porém, aqui vim muito mais como professor e amigo, porque, a amável convite vosso, estou como paraninfo. E é em tal condição que me permito advertir-vos de que o caminho que vindes seguindo vos leva, na expressão de Rui Barbosa, a “mais eminente das profissões a que um homem se pode entregar”. Mas é bom que vos conscientizeis, desde logo, que a contrapartida dessa eminência da atividade judicante é reconhecidamente árdua e espinhosa e por vez até mesmo martirizante, repleta de renúncias e desafios.

De fato, a sociedade, a que o juiz em todos os seus gestos deve servir, da qual o magistrado é, a um só tempo, senhor e refém, exige-lhe, mais do que aos outros profissionais, comportamento irrepreensível, punindo com a desconsideração e o desrespeito aquele que não pautar os seus atos pela retidão, sobriedade e sensatez.

É compreensível que assim seja, dado que, em suas decisões, o juiz atinge valores como a honra, a liberdade e o patrimônio, tornando-se assim o garante dos direitos que o ordenamento jurídico assegura ao cidadão.

Acode-me à memória, a propósito, aquela breve história muito conhecida de um moleiro que, vendo ameaçada a sua propriedade pelo poderoso Frederico II, rei da Prússia, resumiu-se a exclamar: Há juízes em Berlim! Com o que quis simplesmente significar: Confio na justiça. Confio na Justiça de meu país! E digo mais, confio na justiça do meu Estado, confio na justiça da minha comarca, confio na justiça do meu Brasil.

E a quem, se não ao Juiz, incumbiu o Estado o fazer justiça?  Investido nas funções de julgar, o juiz recebe a nobre e delicada missão fazer justiça e decidir os conflitos que lhes são trazidos para o qual deverá desicumbir-se com todo o peso necessário para escolher o caminho da tutela do direito àquele que tem razão.

Julgando estará fazendo justiça. Quem julga e não faz justiça melhor fora que não julgasse, por ser literalmente vil negar o seu a seu dono, daí a importância de o juiz ser consciente da sua nobre função que é a de servir a quem o procura e que tem anseio de justiça, pois como diz Bertolt Brecht, assim como é necessário o pão diário, “é necessária a justiça diária”, pois “o povo necessita da justiça, bastante e saudável”.

Mas, é evidente que nesse labor difícil e delicado o juiz pode errar. Errare humanum est. Sim, o juiz, ser humano, não está imune a erros. O julgamento pode ser justo ou injusto, porque, como enfatiza Eduardo Couture:

Não se inventou, ainda, u’a máquina para produzir sentenças. No dia em que for possível decidir os casos judiciais como se decidem as corridas de cavalos, mediante um ‘olho mecânico’ que registra fisicamente o triunfo ou a derrota, a concepção constitutiva do processo perderá seu sentido e a sentença será uma mera declaração, como queria Montesquieu”.

 

Por isso mesmo complementa Lopes da Costa: “A justiça humana é falível. Não vê, ao contrário da divina, até o íntimo das consciências. Pode errar”. A contingência humana de errar deve, entretanto, reforçar no magistrado o sentimento de que lhe cumpre exercer criteriosa e equilibradamente a nobre função de decidir as causas, grandes ou pequenas, fáceis ou difíceis, duvidosas ou induvidosas.

No entanto, como diz o filósofo e juiz federal piauiense Carlos Augusto Pires Brandão:

Além do grande Arquiteto, somente o Juiz Homem, apesar das desilusões dos tempos, é capaz de resgatar a alma humana dos caminhos errantes, e recompor-lhe a dignidade, porque a máquina nunca sentiu a angústia da gestação, as dores do parto, jamais se atirou em outros braços humanos em busca de amor e carinho. Sem passado e sem história, a máquina, que nunca chorou ou sorriu, não pode sonhar as noites de paz e acalentar os nossos sonhos de fraternidade, solidariedade, de amor”.

 

Na Antiguidade, a administração da justiça estava intimamente ligada à religião por ser considerada função semelhante à do sacerdócio. Em verdade, como adverte o Profeta David, só Deus é Juiz: iudex solus Deus.

A organização social colocou nos frágeis ombros humanos do juiz um fardo tão imensamente grande, tão absurdamente pesado qual o de julgar. Por isso se faz necessário, no exercício da magistratura, recorrer com fervor ao Único e Verdadeiro Juiz invocando suficientes forças para suportá-lo, como faz João Alfredo Medeiros, Magistrado em Santa Catarina, em bela e comovedora prece de sua autoria de que ora reproduzo este pequeno trecho:

Ajuda-me, Senhor, ser justo e firme, honesto e puro, comedido e magnânimo, sereno e humilde. Que eu seja implacável com o erro, mas compreensível com os que erraram. Amigo da Verdade e guia dos que a procuram. Aplicador da Lei, mas, antes de tudo, cumpridor da mesma. Não permita, jamais, que eu lave as mãos como Pilatos diante do inocente, nem atire, como Herodes, sobre os ombros do oprimido, a túnica do opróbrio. Que eu não tema César e nem, por temor dele, pergunte ao poviléu, se ele prefere ‘Barrabás ou Jesus`. Que o meu veredicto não seja o anátema candente e sim a mensagem que regenera, a voz que conforta, a luz que clareia, a água que purifica, a semente que germina, a flor que nasce no estrume do coração humano”.

 

Caros Paraninfados. Espero ter-me desincumbido a contento da tarefa que me confiastes. Dou-vos meus efusivos parabéns pela conclusão deste longo curso. Estais no caminho da magistratura; possuis os instrumentos técnicos e culturais, em razão do estudo e da dedicação e a troca de experiências nesta nobre Casa, que constitui um marco histórico e referência de ensino jurídico. Vale a pena sonhar e dedicar-se ainda mais que haveis de conseguirdes e para isso “é necessário ser-lhe fiel”, como diz Piero Calamandrei, porque a Justiça, “como todas as divindades, só se manifesta a quem nela crê”.

Se não desistirdes e à magistratura realmente chegardes, já que estais suficientemente preparados para disputar uma vaga, havereis de exercê-la com firmeza e probidade. E na evolução da prática judicante, não deixeis de lembrar o que disse Colmo: “A justiça será mais ou menos elogiada – louvada, sujeita a encômios –, não segundo que as leis sejam boas ou más, sim segundo que os magistrados sejam excelentes ou medíocres”.

 

* Vallisney de Souza Oliveira. Discurso de Paraninfo para os Formandos na Escola de Magistratura do Amazonas – ESMAM – 3ª Turma. Manaus/AM, 2001.

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