Poemas Transcritos

20/ 03 /2021

Poesia que transforma

A poesia me transforma

em tantas formas.

Quando escrevo deixo de ser eu,

me transformo em ninguém

pra me transformar em todo mundo.

A poesia é transformação,

é verbo e ação.

Transformar…

O ódio em amar

O Sertão em mar

O silêncio em falar

A dor na coluna em dançar

A timidez em cantar

A desesperança em sonhar

O medo de altura em voar e saltar

A ré em recomeçar.

A poesia me transformou

e me fez transformador.

(Bráulio Bessa)

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20/ 03 /2021

Falas de Uns

O caçador fala,

o marinheiro cala.

Um vive de morte emboscada,

outro se amarra em cais de partida.

O homem faz amor

para se sentir bem.

A mulher faz amor

quando se sente bem.

Uns falam.

Outros apenas fogem do silêncio.

Uns amam.

Outros de si mesmos escapam.

(Mia Couto)

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28/ 02 /2021

Saudades

não tenho saudades

do que vivi

porque tudo

está aqui

encorpado

dentro de mim

como um fígado

um pâncreas

um rim

não tenho saudades

do que vivi

(vi ouvi sonhei senti)

pois já se tornou

o que sou

não tenho saudades

do que vivi

tenho saudades do que viveram

aqueles com quem convivi

não do que vi, do que viram

não do que ouvi, do que ouviram

do que sonharam, sentiram

as pessoas que perdi

(Arnaldo Antunes)

 

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27/ 02 /2021

Primeiro Aviso

De que nos importa

que tudo volte ao pó?

Sobre tantos abismos cantei,

em tantos espelhos vivi.

Não sou nem o sonho nem o consolo

e menos ainda o paraíso.

Talvez, mais do que o necessário,

te aconteça de relembrar

o sussurro destes versos que se acalma

e este olhar que oculta, bem lá no fundo,

no tremor de seu silêncio, uma coroa de enferrujados espinhos.

(Anna Akhmátova)

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01/ 11 /2020

Mágoas

Quando nasci, num mês de tantas flores,

Todas murcharam, tristes, langorosas,

Tristes fanaram redolentes rosas,

Morreram todas, todas sem olores.

Mais tarde da existência nos verdores

Da infância nunca tive as venturosas

Alegrias que passam bonançosas,

Oh! Minha infância nunca teve flores!

Volvendo à quadra azul da mocidade

Minh’alma levo aflita à eternidade

Quando a morte matar meus dissabores.

Cansado de chorar pelas estradas,

Exausto de pisar mágoas pisadas

Hoje eu carrego a cruz das minhas dores!

(Augusto dos Anjos)

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03/ 10 /2020

Amigo da Hora Roxa

Hoje vou conversar com você,

sobre minha caminhada.

De amigo para amigo, vou lhe dizer:

venho de longe, por estrada.

Ora empoeirada, ora enlameada.

Penosa jornada,

possa crer!

Pisoteio no lamaçal, vezes ou outras.

Minhas vestes, pois, estão rotas

e conspurcadas.

Ainda sou arrogante.

Vaidoso como d’outrora

Orgulhoso e pedante.

Nenhuma melhora!

Ainda sou arrastado pelos devaneios,

promessas de tabernas e quimeras.

Estou, pois, retido por muitos enleios.

Como sair desta perplexidade

e alcançar outra atmosfera?

Envolvido na infindável petenera,

abandonei o caminho

e desperdicei a mocidade.

Agora retorno faminto,

sem bolsa, sem linho,

sandália ou anel,

sem asno, sem mula,

sem matula, ou farnel,

sem toca, sem ninho.

Trago, sim, pesado fardo

de dívidas, espinhoso como cardo.

Bem sinto!

Estou a perigo!

Preciso de amigo

que recolha essa trouxa.

E na hora “H”, na hora roxa,

você é o amigo,

aqui e agora.

Você é o amigo

de todas as horas.

(Romão Cícero de Oliveira)

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03/ 10 /2020

Módulo de Verão

As cigarras começaram de novo, brutas e brutas.

Nem um pouco delicadas as cigarras são. Esguicham atarraxadas nos troncos

o vidro moído de seus peitos, todo ele

— chamado canto — cinzento-seco, garra

de pelo e arame, um áspero metal.

As cigarras têm cabeça de noiva,

as asas como véu, translúcidas.

As cigarras têm o que fazer,

têm olhos perdoáveis.

Quem não quis junto deles uma agulha?

— Filhinho meu, vem comer,

ó meu amor, vem dormir.

Que noite tão clara e quente,

ó vida tão breve e boa!

A cigarra atrela as patas

é no meu coração.

O que ela fica gritando eu não entendo,

sei que é pura esperança.

(Adélia Prado)

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31/ 08 /2020

Vida

Hoje a tempestade ameaçou,

Mas não molhou,

Apenas resfriou, os termômetros,

Esfriou, os neurônios,

Congelando a razão,

Morada do que não somos.

 

Porque o que somos,

 

Não é caso pensado.

Não se molha com a chuva.

Não derrete com o calor,

Nem se desfaz com o ácido.

 

O que somos

 

É tesouro bem guardado

Sob chaves de ouro,

Em cofres de aço.

 

Nalgum lugar do corpo

Sob sinfonia velada,

Alternando bits plácidos

E batuques acelerados.

 

O que somos, levita!

 

Voa, não se limita,

ao medo,

à pandemia!

 

Nem se inclina

ao tempo que esfria,

Sob a ameaça da chuva;

 

Que agora cai,

 

Feito pranto de menina

Sobre solo fecundo,

Despertando a semente adormecida

Que se espreguiça

Emergente, colorida!

Irrompe a terra amolecida.

Resplandece, gera vida,

 

Pelas lágrimas da nuvem cinza!

 

(Marcelo Kassab)

(Poema vencedor do IV Concurso Literário “Bom Viver”/Habeas Liber/2020/UnB)

 

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02/ 08 /2020

O inquisidor

Podia ter sido um mártir, fui um verdugo.

Purifiquei as almas com o fogo.

Para salvar a minha, busquei o rogo,

o cilício, as lágrimas e o jugo.

Nos autos de fé vi o que havia

sentenciado minha língua: as piedosas

fogueiras e as carnes dolorosas,

o fedor, o clamor e a agonia.

Morri. Esqueci quem padece,

mas sei que este vil remordimento

é um crime que ao outro se acresce

e que aos dois há de arrastar o vento

do tempo, que é mais longo que os pecados

e a contrição por mim já esgotados.

(Jorge Luís Borges)

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13/ 07 /2020

Ó Memória Insepulta

Ó memória insepulta nas areias

da praia a que regresso, mas não ouço

ali a voz dos ventos, o balouço

da espuma nas espáduas das sereias.

Ó memória da infância sob as teias

que as aranhas teceram rente ao poço

do jardim: ervas, lodo, o calabouço

onde se afiam os punhais, as meias

palavras, as intrigas cujas veias

vertem ódios tão duros quanto um osso

e tudo o que separa, fundo fosso,

as coisas puras das mais vis e feias.

Ó memória que augura: ainda és moço,

e a velhice é tão só outro alvoroço.

(Ivan Junqueira)

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