Poemas Transcritos

18/ 11 /2023

Canção dos romances perdidos

Oh! o silêncio das salas de espera

Onde esses pobres guarda-chuvas lentamente escorrem…

O silêncio das salas de espera

E aquela última estrela…

Aquela última estrela

Que bale, bale, bale,

Perdida na enchente da luz…

Aquela última estrela

E, na parede, esses quadros lívidos,

De onde fugiram os retratos…

De onde fugiram todos os retratos…

E esta minha ternura,

Meu Deus,

Oh! toda esta minha ternura inútil, desaproveitada!…

(Mario Quintana)

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18/ 11 /2023

De Profundis

Quando a noite vier e minh’alma ciclotímica

afundar nos desvãos da água sem porto,

salva-me.

Quando a morte vier, salva-me do meu medo,

do meu frio, salva-me,

ó dura mão de Deus com seu chicote,

ó palavra de tábua me ferindo no rosto.

(Adélia Prado)

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20/ 08 /2023

Moda de viola

Os olhos daquela ingrata às vezes

me castigam às vezes me consolam.

Mas sua boca nunca me beija.

(Cacaso)

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13/ 08 /2023

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama o coração.

(Fernando Pessoa)

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29/ 07 /2023

A mulher que passa

Meu Deus, eu quero a mulher que passa.

Seu dorso frio é um campo de lírios

Tem sete cores nos seus cabelos

Sete esperanças na boca fresca!

Oh! como és linda, mulher que passas

Que me sacias e suplicias

Dentro das noites, dentro dos dias!

Teus sentimentos são poesia

Teus sofrimentos, melancolia.

Teus pelos leves são relva boa

Fresca e macia.

Teus belos braços são cisnes mansos

Longe das vozes da ventania.

Meu Deus, eu quero a mulher que passa! (…)

(Vinícius de Moraes)

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29/ 07 /2023

Animais

Se tiver que contar um segredo…

Conte aos animais

Eles são fiéis e leais

Te abraçam por nada

Sem querer mais

Sentem sua dor em tristeza

Mas arrancam sorrisos com destreza

Não pedem nada em troca

Só um carinho em beijoca

Enchem corações

Curam depressões

Estão longe da maldade

E olvidam a leviandade

Amam sem pretensão

Nos causam a redenção

Se tiver que contar um segredo…

Conte aos animais.

(Grégore Moreira, Centelhas póeticas)

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27/ 07 /2023

Uma canção desesperada

…Tudo foste engolindo, até mesmo a distância.

Como o mar e o tempo, tudo em ti foi naufrágio!…

Era a sede e a fome, e tu foste a fruta.

Era a luta e a ruína, e tu foste o milagre….

Esse foi meu destino e nele viajou o meu sonho,

nele caiu o meu sonho, tudo em ti foi naufrágio!…

Ah, mais além de tudo. Ah, mais além de tudo.

É a hora de partir, ó, abandonado!

(Pablo Neruda. Vinte poemas de amor e uma canção desesperada)

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27/ 07 /2023

Nós perdemos até este crepúsculo

Ninguém nos viu esta tarde com as mãos unidas

enquanto a noite azul caía sobre o mundo.

Eu vi desde a minha janela

a festa do poente nas colinas distantes.

Às vezes, como uma moeda,

acendia-se um pedaço de sol nas minhas mãos.

Eu te recordava com minha alma apertada

desta tristeza em que tu me conheces.

Assim, por onde estavas?

Entre que pessoas?

Dizendo que palavras?

Por que me virá todo o amor subitamente

quando me sinto triste, e te sinto distante?

Caiu o livro que sempre se toma ao crepúsculo

e como um cão ferido girou a minha capa.

Sempre, sempre te distancias pelas tardes

até onde o crepúsculo apaga as estátuas.

(Pablo Neruda. Vinte poemas de amor e uma canção desesperada)

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02/ 07 /2023

Manhã à Janela

Eles batem pires nas cozinhas fundas,

Junto às bordas calcadas da rua

Percebo as almas úmidas das empregadas

Que brotam amuadas dos portões.

As vagas da névoa marrom me arremessam

Rostos contorcidos do fundo da rua

E arrancam da passante de saia enlameada

Um sorriso sem destino que flutua pelo ar

E some junto à linha dos telhados.

(T.S Eliot)

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06/ 05 /2023

Gente Miúda

Daniel não tinha documentos,

RG, certidão ou carteira profissional.

Não tinha sobrenome,

não tinha número, nem cidade natal.

Quase um bicho, dormia na rua sobre as notícias

e acordava na sarjeta, na calçada ou no lixo.

Os dentes, em intervalos,

mastigavam as migalhas do mundo,

as sobras do planeta.

Era soldado

das tropas dos famintos.

Os trapos — fardas dos miseráveis —

cobriam-lhe apenas o peito, a bunda e o pinto.

Sangrava de dia

o açoite do abandono.

Amigos? Só os cães

que o protegiam dos seres humanos.

Morreu

velho e abatido

depois de viver, todos os dias,

durante trinta e sete anos,

como se nunca tivesse existido.

(Sérgio Vaz)

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