Artigos - Normas ex officio: Juiz não está limitado às regras indicadas pelas partes

10/ 06 /2015

Normas ex officio: Juiz não está limitado às regras indicadas pelas partes

Apesar de polêmico quanto à extensão e à aplicabilidade, é muito invocado no Direito Processual o adágio segundo o qual o juiz conhece o direito, assentado na expressão latina iura novit curia, que se afigura na verdade como verdadeiro princípio processual específico acerca dos poderes do juiz. O preceito significa que o julgador não está limitado às regras jurídicas indicadas pelas partes, pois, diante da presunção de que conhece o direito, cabe-lhe aplicar as normas ex officio.

Quanto à origem, para Fritz Baur o iura novit curia passou a ter relevância com o surgimento de uma magistratura técnica e especializada que exigia do juiz o conhecimento das normas jurídicas[1].

O processo civil francês, conforme explica Walter Habscheid, tendo seguido inicialmente a legislação processual civil alemã (ZPO), pela qual é pretensão do autor e é dever do juiz aplicar de ofício o direito substancial, dela se distanciou ao reconhecer às partes o direito de limitar o objeto do processo à questão jurídica (artigo 12 do Código de Processo Civil Francês). Contudo, segundo o mesmo autor, na França ainda se preserva a máxima segundo a qual la Court sait le Droit[2]. Em Portugal, “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (artigo 664 do CPC Português).

No Direito Processual Civil Brasileiro a parte autora necessita apresentar os fundamentos jurídicos do pedido na inicial, porém, em razão do artigo 126 do CPC, a decisão não se vincula necessariamente ao direito invocado pelas partes. Em outras palavras, o órgão judiciário pode aplicar o direito ao caso concreto, sem prender-se, ainda, ao dispositivo de lei ou ao nome dado à demanda (ação).

No Direito Processual Penal vale a mesma regra, tanto que se a acusação expuser fatos com base em norma equivocada, o juiz pode, aplicando o artigo 383 do Código de Processo Penal, fazer o devido ajuste, dando ao fato a categoria jurídica correta antes de proferir a sentença.

Do ponto de vista subjetivo, nem sempre o julgador conhece aquele direito especificamente, em face da edição contínua de novas leis, da conflituosa jurisprudência sobre a norma, de diversos atos normativos do Executivo e ainda de uma vasta doutrina interpretativa dos Códigos. Assim nesse labirinto jurídico é raro encontrar-se alguém com ilimitado e vastíssimo conhecimento, conhecedor de todas as áreas e ramos do Direito e de outras Ciências.

Por outro lado, com a difusão da informação, sobretudo pelo auxílio da internet o juiz passa a conhecer a legislação estadual e municipal e até do estrangeiro, não havendo necessidade, na prática, da parte provar tal direito para cumprir o desatualizado, mas ainda em vigor, artigo 337 do CPC.

Seja como for, se impõem as especializações de Varas, Seções, Câmaras e Turmas de órgãos colegiados a fim de possibilitar ao julgador restringir o âmbito de atuação da matéria dos diversos ramos do direito e assim aplicar melhor o iura novit curia.

A presunção do ponto de vista objetivo, fundado neste adágio, é fator de garantia e segurança para as partes que levarão sua causa para um profissional especializado, para alguém que ingressou na magistratura por méritos e presumidamente com notável saber jurídico e, portanto, plenamente apto a, como representante do Estado, aplicar o melhor direito e a justiça.

Em virtude dos poderes advindos desse preceito, o juiz tem liberdade para escolher as normas jurídicas que, a seu sentir, servem de guia para a decisão do litígio; pode servir-se das razões jurídicas que entenda como mais adequadas; em nenhuma das duas hipóteses se vincula às manifestações das partes[3].

O juiz conhece o direito se coloca em harmonia com o princípio da indeclinabilidade da jurisdição. Considerando que o julgador tem como dever inalienável aplicar as normas jurídicas é muito mais justificável a busca judicial dos fundamentos no ordenamento jurídico. Se inexistente este arsenal jurídico, cabe-lhe ainda procurar outros meios para auxiliá-lo, tais como a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Levando-se em conta, ainda, que toda pessoa tem o dever de conhecer para obedecer à norma, mesmo porque, segundo a Lei de Introdução às Normas no Direito Brasileiro, ninguém pode alegar desconhecimento das regras vigentes, com muito mais razão ao julgador se impõe obediência aos imperativos jurídicos, em razão de sua condição de juiz de Direito, de bacharel em Ciências Jurídicas e de profissional das leis. Esta é, então, a presunção de ser o juiz conhecedor do direito que vai aplicar.

Segundo Jorge Peyrano o magistrado está preso, em princípio, no círculo de ferro formado pelos fatos alegados e provados pelos litigantes, mas não está obrigado a aceitar o enquadramento normativo propiciado por eles. Considerando tratar-se de dever, o julgador precisa suprir a ignorância normativa do autor ou do réu, ou sanar erros cometidos nas pretensões e defesas das partes[4].

Nos seus julgamentos o juiz está adstrito ao pedido e aos fatos da causa (lide), não se encontrando vinculado rigorosamente à regra jurídica exposta pelas partes, conquanto os demandantes tenham que apresentar o fundamento jurídico de suas manifestações postas e contrapostas.

Conforme Arruda Alvim, “a afirmação lógico-jurídica de que o juiz não tem liberdade na escolha da norma não colide com os brocardos da mihi factum, dabo tibi ius e iura novit curia. Desde que identificado o fato “a”, segue-se, inexorável, a aplicação da norma que abstratamente o prevê, e consequências normativas respectivas. O que é lícito e indispensável, aliás, ao juiz é corrigir o fundamento legal, não porque se lhe reconheça discricionariedade nisto, mas porque se trata de usar o fundamento correto, a respeito do qual a parte, ou partes, erraram”[5].

Calmon de Passos explica que “o juiz necessita do fato, pois que o direito ele é que o sabe. A subsunção do fato à norma é dever do juiz, vale dizer, a categorização jurídica do fato é tarefa do juiz. Se o fato narrado na inicial e o que foi pedido é compatível com a categorização jurídica nova, ou com o novo dispositivo de lei invocado, não há por que se falar em modificação da causa de pedir, ou em inviabilidade do pedido. Essa inviabilidade só ocorre quando as consequências derivadas da nova categoria jurídica não podem ser imputadas ao fato narrado na inicial, nem estão contidas no pedido, ou são incompatíveis com ele”[6].

Polêmica pontual quanto ao iura novit curia se encontra na possibilidade ou não de o juiz aplicar de ofício sem que dê vista às partes o aludido princípio.

A dicção iura novit curia, como arremata o mesmo Fritz Baur, “não significa que o Tribunal disponha do monopólio da aplicação do direito, desconhecendo ou desprezando as conclusões das partes tendo em vista as normas jurídicas invocadas pelos litigantes”[7].

Na verdade, o direito pode ser interpretado e invocado livremente pelos sujeitos do processo e o próprio juiz pode acolher ou não os argumentos puramente jurídicos de uma ou de ambas as partes e pode trazer um terceiro argumento, sem mudança dos fatos, independentemente de concordância das partes.

Nesse ponto, não se pode obrigar o juiz a seguir um dos pontos de vista jurídico, cabendo-lhe, a fim de prestigiar o procedimento democrático judicial, a abrir o contraditório a fim de demonstrar às partes esse argumento essencialmente de direito não levantado pelas partes.

As partes também não possuem o monopólio do direito, mesmo que tenham que apresentar como causa de pedir os argumentos jurídicos (mesmo porque o juiz somente julga por equidade quando autorizado por lei), a parte autora na inicial e a parte ré na contestação.

Sendo a jurisdição atividade indeclinável é poder e é dever do juiz dispor do direito, inicialmente aplicando e interpretando a norma que, se inexistente ou omissa, autorizar-lhe-á a busca de outros amparos jurídicos, até mesmo fora do sistema, segundo o artigo 126 do CPC.

Naturalmente, o princípio que defere ao juiz o conhecimento do direito não tem incidência no julgamento por equidade, no qual o julgador não está preso à legalidade estrita, como na hipótese de jurisdição voluntária (artigo 1.109 do CPC) ou, em menor grau, nos Juizados Especiais (artigo 6º da Lei 9.099). Bem assim, o axioma de que se cuida retira do preceito da correlação ou congruência a parcela referente aos fundamentos jurídicos da sentença, porquanto o juiz pode aplicar outra regra abstrata ao caso concreto e não necessariamente aquela invocada pela parte.

Para Lino Enrique Palácio, o julgador somente deve limitar-se às alegações de fato e ao pedido formulado pelas partes e não às normas jurídicas que estas hajam invocado em apoio de suas pretensões ou defesas, vigorando no Direito Argentino o princípio do iura novit curia. Aduz esse autor que o Código de Processo Civil Nacional não aceita em regra os pedidos implícitos nem genéricos. Quanto aos últimos, apenas se permite pedido sem limite quantitativo, nos termos do artigo 330, item 2, do mesmo Código, na impossibilidade de o autor poder fixar, na inicial, os danos e os prejuízos[8].

O juiz tem liberdade para aplicar o direito e se valer explicitamente do material jurídico pertinente, não chegando a violar o contraditório se apresentar nova tese legal em face justamente da incidência do princípio do iura novit curia.

Por outro lado, para doutrina adversa, a inovação judicial com nova tese jurídica viola flagrantemente o princípio do contraditório. Para Eduardo Grasso, a iniciativa do juiz quanto à interpretação e à escolha da regra jurídica contrasta com o contraditório, uma vez que a parte tem o direito de saber qual será a norma aplicável, antes da sentença[9].

O Novo Código de Processo Civil também partilha do entendimento da doutrina estrangeira que defende a prevalência do contraditório: “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual tenha de decidir de ofício” (artigo 10 – Projeto de Lei 8046/2010).

Conquanto seja natural sua inserção na petição inicial, até para facilitar o trabalho do julgador, a menção ao artigo de lei não é imprescindível, porque o dispositivo legal não se confunde exatamente com os fundamentos de direito. O Código de Processo Penal, entretanto, exige que, na sentença penal, o juiz indique os artigos de lei aplicáveis (artigo 381, IV, Código de Processo Penal).

É necessário, como aduz Fernando Luso Soares, “a indicação da lei, mas só com o objetivo de tornar possível a apreensão do quid jurídico[10]. Presume-se ser o direito positivo de conhecimento oficial do juiz, que se encontra, por conseguinte, apto a aplicá-lo por dever de ofício, expondo devidamente as razões de seu convencimento.

Enfim, conquanto o juiz não possa deixar de apreciar por completo a causa, isto é, examinar todas as questões levantadas pelas partes, não está amarrado às razões jurídicas deduzidos pelas partes, por incidência do mandamento do iura novit curia.

[1] Da importância da dicção ‘iuria novit curia’. Revista de Processo, v. 3, jul.-set. Tradução: Arruda Alvim. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p. 177.

[2] L’oggetto del processo nel diritto processuale civil tedesco, Rivista di Diritto Processual Italiano v. 35, 2a série. Padova: CEDAM, 1980, p. 459.

[3] GANUZAS, Francisco Javier Ezquiaga, Iura novit curia y aplcación judicial del derecho. Valladolid/Espanha: Lex Nova, 2000, p. 65.

[4] El proceso civil – princípios e fundamentos. Buenos Aires: Astrea, 1978, p. 96-7.

[5] ALVIM Netto, José Manoel de Arruda. Dogmática jurídica e o novo Código de Processo Civil, Revista de Processo v. 01, jan.-mar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p. 93.

[6] Comentários ao Código de Processo Civil, v. 3. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 159.

[7] Op. cit., p. 177.

[8] Manual de derecho procesal civil, t. 1, p. 383-4, e t. 2, p. 13. 4. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1973.

[9] Dei poteri del giudice, in Commentario del Codice di Procedura Civile, t. 2. Torino: Torinese, 1973. t. 2. p. 1.263.

[10] Direito Processual Civil – parte geral e processo declarativo. Coimbra: Almedina, 1980. p. 246.

 

* Vallisney de Souza Oliveira. Revista Consultor Jurídico, Publicado em 22 de janeiro de 2013, www.conjur.com.br

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