Artigos - Deveres Éticos no Processo

28/ 12 /2013

Deveres Éticos no Processo

INTRODUÇÃO

Para a obtenção de uma decisão justa, entre outras exigências o processo deve ter transparência e legitimidade, e os contendores a consciência de que o escopo maior da jurisdição é com a justiça e com o direito e não com a parte ou com o Estado. Eis, então, a preocupação do legislador moderno: tornar explícitos os meios de fazer valer os princípios éticos em toda Ciência jurídica e, em especial, no direito processual.

Embora o princípio da moralidade processual tenha deixado de estar explícito na Constituição Federal de 1988, isso não lhe prejudica a sua aceitação e inserção à luz de outros princípios a ela interligados.

O princípio da ética processual é um dos fatores para garantir a legítima aceitação da decisão. Um processo fundado na imoralidade acarreta a desconfiança do povo no serviço judicial, abala o regime democrático e a segurança jurídica dos cidadãos e arremessa o Estado no atraso, na incerteza e no descrédito. Daí a razão para se propugnar por uma atuação processual de todos os seus agentes de acordo com o interesse público, a retidão, a equidade e a justiça.

 

1. BOA-FÉ

Sabe-se que ser leal é conduzir-se de acordo com os valores éticos. Cuida-se de ser obediente à honradez e à sinceridade; significa ser franco e não ser traiçoeiro. Da lealdade se irradiam alguns valores sociais necessários para a boa convivência como a própria boa fé[1].

Estar de boa fé significa ser verdadeiro e de espírito aberto, ser crente na verdade e na justiça, ser fiel aos princípios e aos ideais nos quais se crê e ter uma conduta centrada na retidão e no bom caráter. Boa fé, para André Comte-Sponville, “como virtude, é o amor ou o respeito à verdade, e a única fé que vale. Não, claro, que a boa-fé valha como certeza, nem mesmo como verdade (ela exclui a mentira, não o erro), mas que o homem de boa-fé tanto diz o que acredita, mesmo que esteja enganado, como acredita no que diz. É por isso que a boa-fé é uma fé, no duplo sentido do termo, isto é, uma crença ao mesmo tempo em que uma fidelidade. É crença fiel, e fidelidade no que se crê. Pelo menos enquanto se crê que seja verdade” [2].

A boa-fé, sendo fé virtuosa naquilo que se crê, apesar de ninguém estar isento de cometer equívocos na sua apreciação, abomina dissimulações e falsidades. Acrescenta o mesmo autor: “Se for preciso mentir para sobreviver, ou para resistir à barbárie, ou para salvar a quem se ama, a quem se deve amar, não há a menor dúvida, para mim, de que se deva mentir, quando não há outro meio, ou quando todos os outros seriam piores” [3].

É de se alertar, porém, que rigorosamente no processo não há razão da introdução da mentir para sobreviver, isto é, sacrificar uma virtude, que é a verdade, em prol de qualquer outro interesse, porque a verdade é um bem preciso no Direito e da Justiça. Aliás, ninguém necessita mentir para não morrer, porque é regra a proibição da pena de morte. Mesmo em homenagem ao direito de defesa e à presunção de inocência a estupefata e indesejável tolerância da omissão ou da mentira do acusado no processo penal, essa prática não pode ser generalizada em relação aos demais sujeitos da relação judiciária.

O juiz, o agente do Ministério Público e os colaboradores judiciais, tais como peritos e testemunhas, devem conduzir-se pela verdade, sendo reprovável fazer afirmações falsas, omissão dolosa, fingimento, a hipocrisia e simulação, atitudes imorais e contrárias ao justo processo.

 

2. DEVERES PROCESSUAIS

No Direito Processual ficou famosa a polêmica entre Goldsmith e Büllow, no século XIX, acerca da natureza do processo. Prevaleceu o entendimento proclamado pelo último, segundo o qual o processo consistia numa relação entre o juiz e as partes, repleta de faculdades, deveres e poderes dos agentes e interessados.

Conquanto tenha sido vencido na polêmica doutrinária, Goldsmith mostrou uma outra realidade do processo, afirmando se tratar de uma situação jurídica, na qual as partes tinham o ônus de participar ativamente ou passivamente, sujeitando-se cada um, de acordo com a sua conduta, ao sucesso ou ao insucesso na demanda.

Outro jurista, o espanhol James Guasp, concebeu o processo como um conjunto de finalidades perseguidas pelo juiz e pelas partes a fim de que a justiça fosse alcançada.

Assim, o processo é visto como um conjunto de deveres, na doutrina de Büllow, como ônus, na tese de Goldsmith, e como um conjunto de regras de boa-fé, na posição de Guasp. São visões doutrinárias do mesmo fenômeno, mas que levam à noção da essência do processo: uma relação jurídica fincada na verdade e no direito.

O nosso Código de Processo Civil de 1973 é informado pelos ônus a que submete a parte: ônus de contestar, de requerer uma prova, de recorrer, de indicar bens à penhora. Também o mesmo Código é fundado nos deveres das partes de atuarem com licitude na respectiva conduta e nos poderes do juiz, para decidir, para despachar, para dirigir a audiência etc.

 

3. PRINCÍPIO DA PROBIDADE PROCESSUAL

Na antiguidade o processo se ligou à religião e menos na razão, mas nem por isso a moralidade deixou de vir acompanhada por muitos povos na crença da participação de Deuses nos julgamentos, como no período das Ordálias ou Juízos de Deus.

Na Idade Média, para os povos bárbaros, por exemplo, a palavra valia bastante, uma vez que o juramento tinha um valor transcendental, inclusive com a possibilidade de que alguém, como um nobre ou outra pessoa importante na escala social, depusesse em lugar de outrem ou se comprometesse em favor de uma das partes.

Da fase do juramento, ainda na Idade Média, começou o processo a ser regido pela força: admitia-se o duelo, a luta, tanto que uma pessoa podia colocar um campeão para combater na arena em seu favor a fim de vencer a causa.

O direito medieval canônico, apesar de mais evoluído, também aceitava o juramento e em vez dos juízos de Deus admitiu a prova tarifada em que o testemunho de um clérigo valia mais do que um de uma pessoa comum e o testemunho de um cristão valia mais do que o de um não cristão e assim por diante.

Na Idade Moderna a luta deu lugar à razão, para o mal e para o bem. Com o advento do liberalismo e da revolução francesa, o processo passou por um estágio em que pouco valia a palavra afiançada, diante do mecanismo do jogo de palavras, da eloquência muitas vezes vazia e impressionista. Desprezada a boa-fé e diminuída a participação do juiz no processo, que era entendido apenas a boca da lei, teve lugar manobras das partes para vencerem a causa, inclusive com deslealdade.

Apesar das práticas e falhas nos sistemas judiciais, sobretudo na época contemporânea nunca se deixou de busca o ideal de justiça, com a repulsa aos artifícios maliciosos que encobrem a verdade.

Jorge W Peyrano registra que o princípio da moralidade voltou como a ave fênix do processo: ressurgiu das cinzas depois que acabou a fase da ideologia liberal do século XIX onde na contenda triunfava o mais astuto e o mais hábil[4].

No direito brasileiro, no regime das ordenações, basta fazer a leitura de autores antigos como Paula Batista, João Ramalho, João Monteiro, entre outros, para se encontrar registros sobre a chicana dos advogados, dos leguleios, dos golpes de mestre para ludibriar o juiz ou para não cumprir ordens judiciais, alongando-se por décadas o término do processo.

Hoje em todas as legislações procura-se com intensidade mecanismos mais eficazes para combater a má-fé[5], porquanto o ilícito processual transgride não apenas o direito das partes, mas a própria jurisdição. Como já se assinalou, em outra oportunidade, “o processo não é uma luta de vale-tudo ou uma brincadeira de topa-tudo, porém um instrumento em busca de aviventar o ideal de justiça, que deve ser reclamado com respeito à ética”[6].

No entanto, o sistema brasileiro possui regras peculiares quanto ao assunto, pelo fato de prever os deveres de todos os participantes do processo, bem como pelo fato de cominar sanções contra a falta de ética processual.

 

4. ÉTICA DOS PARTICIPANTES DO PROCESSO

O processo é um instrumento de fornecimento de justiça pelo Estado e, portanto, nessa relação pública são inadmissíveis condutas contrárias aos valores morais de retidão e de bom caráter.

Entende Carlos Aurélio M. Souza que o processo não é “polêmica bizantina de nefelibatas; permissão para dilapidar o tempo e o dinheiro dos litigantes, em homéricas disputas doutrinárias, afastando-o da meta colimada”, tampouco “instrumento de interesses mesquinhos e subalternos das partes, os quais, muita vez, se confundem com o interesse ilegítimo”.

Para esse autor, processo significa a ara sagrada da justiça, criadora da paz social e “etapa dramática de aperfeiçoamento das pessoas, ao reconhecerem os limites de suas pretensões, e o dever jurídico e moral de a ninguém lesar; saber dialeticamente posto no confronto das idéias, parturejando sínteses inovadoras do direito” [7].

Os deveres das partes estão dispostos em vários pontos do Código de Processo Civil, entre os quais os artigos 14 a 18, 600 e 601. Além disso, uma das diretrizes fundamentais dos poderes do juiz assenta-se na possibilidade, segundo o art. 125, III, do mesmo Código, de prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça.

O próprio juiz está sujeito às sanções civis, segundo o que dispõe o art. 133 do CPC, quando agir com deliberada má-fé ou dolo. O Ministério Público, na qualidade de parte, autor ou réu, e como fiscal da lei se sujeita também às sanções processuais. O advogado, principalmente, é outro agente que deve atuar com a ética. O sistema de sanções que lhes são aplicáveis está fundado basicamente no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB.

Os deveres éticos são exigências necessárias para um debate justo, sem falsidades, sem solércia, prevendo a lei conseqüências processuais para aquele que desrespeita o mínimo ético judicial e com isso causa prejuízo ao interesse público.

O juiz deve ter um desempenho escorreito no processo e no julgamento para poder cumprir seu dever de servir à sociedade, ao direito e aos fins da jurisdição. Da mesma forma, as condutas das partes precisam estar de acordo com a moralidade. A ação no ambiente judicial precisa ser regida por regras éticas. A transgressão ao devido processo, quando se quer obter outro resultado que não a busca da verdade, sobretudo resultados desonestos e falsos, merece ser prevenida e combatida.

A obediência ao princípio da moralidade processual tem sua razão de ser na necessidade de que a sentença seja formulada em consonância com o direito e com o real conflito de interesses.

Ao ficar vedada a inovação extemporânea da demanda e ao se estabelecer que o pedido e a causa de pedir devam ser expostos na inicial e toda defesa na contestação, o cidadão tem a garantia de que o juiz atuará de acordo com as legítimas pretensões e interesses buscados no processo.

Não devem ser admitidos os atos de surpresas e espertezas, como a introdução e reconhecimento de fatos sabidamente falsos, apresentação de fundamentos impróprios e condutas desleais. É garantia do processo devido a adstrição do juiz à demanda objetiva, isto é, à prova produzida dentro do contraditório, observando o direito debatido e aplicável ao caso concreto.

Diante do uso da máquina judiciária para fins imorais ou estranhos à obtenção de um interesse legítimo, o juiz dará sentença sem seguir os limites da lide, mas de acordo com o princípio da boa-fé processual. Nesse caso o magistrado não estará preso às pretensões formais das partes (art. 129 do CPC). Desapreciando na sentença de mérito o pedido dos litigantes, poderá dar solução diferente da postulada e da defendida, como meio de obstar o conluio e o uso do juízo para fins ilícitos.

Muitas vezes a própria parte pugna pela pena contra a má litigância ou o Ministério Público, como fiscal da lei, promove atos no processo visando a obstar ou a punir a conduta contrária ao direito. Isso não impede, no sistema processual brasileiro, a atuação oficial do juiz para combater os atos atentatórios à dignidade da justiça e ao bem comum. Esse poder judicial de velar pela dignidade da atividade judicial e dos interesses processuais legítimos caracteriza real controle sobre a atividade das partes, mesmo porque o juiz é o vigia maior da boa-fé no processo.

 

5. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ

Em relação à má-fé, cumpre examinar o art. 18 do CPC, que confere ao juiz, de ofício ou mediante requerimento, poderes para aplicar a multa e, ainda, a condenação de indenização à parte contrária pelos prejuízos eventualmente sofridos por ela.

A multa e a indenização à parte contrária possuem natureza processual e podem ser impostas tanto ao autor, quanto ao réu. Do mesmo modo, possui natureza processual a indenização à parte contrária disposta no art. 18 do CPC, conquanto exista um acréscimo no comando da sentença (condenação das despesas gastas em virtude da atitude reprovável do outro demandante), apto a influenciar no direito material do litigante.

A multa concedida na tutela específica de obrigação de fazer ou de entrega de coisa (art. 461 e 461-A) não se confunde com a do art. 18 supracitado. Aquela se relaciona com o pedido e está a serviço do cumprimento do pedido, esta tem cunho exclusivamente processual, porque tem por escopo combater condutas, fins e atos antijurídicos.

A litigância dolosa se sujeita ao reconhecimento de ofício pelo juiz, em razão do comportamento contrário ao direito processual e à ética, não somente por parte do autor, mas também por parte do réu.

No entanto, os advogados não se sujeitam, em princípio, à pena de litigância de má-fé, até por analogia ao art. 14 e parágrafo único do Estatuto Processual.

Observe-se que, independentemente de pedido de uma das partes ou do representante do Ministério Público, quando parte ou custos legis, a condenação ao litigante de má-fé pode ser aplicada ex officio pelo juiz, com a necessária fundamentação do ato decisório. Bem assim, na ação popular, conforme a Constituição Federal (artigo 5º, inciso LXXXIII), o autor fica isento de custas e honorários, porém, em caso de comprovada má-fé, fica sujeito ao pagamento do décuplo do valor das custas.

O pedido de indenização à parte contrária pode ser feito na petição inicial, porque o demandante não tem condições de prever a necessidade de indenização por futuras condutas do réu. É o processo a sede própria para o juiz poder aferir e observar a atitude dolosa e o prejuízo causado à parte contrária, sem embargo de a condenação à indenização constituir título executivo em favor do outro litigante ensejando o cumprimento da sentença. O título executivo foi gerado por um acontecimento havido no curso (e não antes ou depois) do processo.

Pela má-fé no processo, o litigante estará sujeito à pena, a ser aplicada na sentença ou em decisão interlocutória, a pedido ou de ofício, nos termos do art. 18 do CPC, mas igualmente será cobrado somente após o trânsito em julgado.

 

CONCLUSÃO

No cenário forense a boa-fé constitui fundamental elemento para uma decisão justa. O processo, constituído de uma relação entre partes e juiz, deve ser conduzido com técnica, verdade e responsabilidade, havendo meios legais que dão ao juiz os meios para coibir a litigância de má-fé.

O ordenamento jurídico prevê maneiras eficientes para afastar qualquer atentado ao livre e escorreito caminhar do processo e à busca da verdade real nos julgamentos. Entre esses meios sobressaem os princípios e as leis processuais que, nas mãos de um juiz atento e responsável, são importantes para a coibição de abusos e triunfo dos direitos.

Acima de tudo, sem prejuízo da repressão à má-fé processual, a prevenção é muito importante. Daí que os operadores do direito em geral, tais como advogados, juízes, professores, promotores, precisam dar exemplo de conduta dentro da moralidade e reafirmar em cada lição, em cada discurso, em cada oportunidade que travam com os atuais e futuros profissionais forenses a necessidade de um comportamento responsável e ético, anteparo maior para quem pretende realizar, defender e receber justiça.

 

Vallisney de Souza Oliveira (VSO). Publicado também, e em texto mais completo, na Revista Dialética de Direito Processual (RDDP) n. 75, São Paulo: Dialética, junho de 2009.


[1] Em direito processual lealdade é “o elemento fundamental do princípio de probidade processual, que congloba sinceridade, franqueza, honestidade, veracidade e a ausência de temeridade, a serem guardadas pelas partes e seus procuradores na instauração e no curso da demanda (SIDOU, J. M. Othon. Dicionário jurídico: Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 455).

[2] COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. Trad. BRANDÃO, Eduardo. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 213-214.

[3] Idem, ibdem, p. 218.

[4] PEYRANO, Jorge W. El proceso civil – princípios y fundamentos. Buenos Aires: Astrea, 1978. p. 171.

[5] Veja-se, por exemplo, § 178 do Código de Processo Civil Alemão – ZPO, o art. 88 do CPC Italiano e ainda o art. 665 do CPC de Portugal.

[6] OLIVEIRA, Vallisney de Souza. Audiência, Instrução e julgamento. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 31.

[7] SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Poderes Éticos do juiz: a igualdade das partes e a repressão ao abuso do processo. Porto Alegre: Fabris, 1987. p. 144-145.

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